Factos são factos e é por eles, acima de tudo, que as pessoas devem ser recordadas. E um facto é que, até 1976, os êxitos do desporto português resumiam-se ao futebol e ao hóquei em patins. O outro facto é que, depois de 1976, o atletismo passou a ser a mais importante fábrica de campeões e de medalhas do País. Mas o mais relevante, no fim desta contabilidade, é que se perguntarmos a qualquer atleta, treinador ou simples curioso das coisas do desporto, quem foi o autor dessa revolução, só um nome será proferido: Mário Moniz Pereira.
Nunca houve outra unanimidade como esta em Portugal, sejamos sinceros. Há muito que todos sabemos que o prof. Moniz Pereira foi o responsável pela mais importante mudança de mentalidades do desporto português. E sabemo-lo de uma forma incontestável. Foi ele que soube convencer os atletas portugueses a terem a mesma ambição que os adversários estrangeiros e, assim, sentirem-se livres para lutar pelas medalhas. E foi ele, também, que conseguiu convencer os dirigentes dos clubes desportivos e os responsáveis políticos do País para a necessidade de apoiar os desportistas, dar-lhes condições para treinarem diariamente e, assim, conquistarem títulos.
Se há poucos dias recordámos os 40 anos da primeira medalha olímpica do atletismo português (a prata de Carlos Lopes, no tal ano de 1976, nos Jogos de Montreal) só o fizemos graças a Moniz Pereira. O actual presidente da Federação Portuguesa de Atletismo, Jorge Vieira, teve, aliás, uma expressão feliz (reproduzida nesta coluna) quando salientou o quanto essa medalha revolucionou o País: “Abriu mentalidades, provou que os portugueses tinham condições para lutar de igual para igual com os outros e que também podiam ganhar medalhas”.
Nesse momento, Jorge Vieira fez também questão de lembrar o nome daquele que considera ter sido o “autor” da medalha: “Se há pessoa a quem se deve este abrir de mentalidades é ao prof. Mário Moniz Pereira. Foi ele o primeiro a dizer que se dessem condições de treino aos portugueses eles também poderiam ser campeões. Foi ele o primeiro a recusar o sentimento de inferioridade que parecia existir no País, nesses tempos. Por isso, essa medalha teve, claramente, um autor – Mário Moniz Pereira – e um ator – Carlos Lopes”.
De certa maneira, foi normal ter ouvido estas palavras de Jorge Vieira, já que ele foi contemporâneo de grande parte dessa revolução. O mais extraordinário, confesso, foi ter escutado, também há poucas semanas, uma homenagem semelhante por parte de Nélson Évora. É melhor, se calhar, referir um pormenor que explica essa estupefacção: Nélson Évora nasceu em Abril de 1984. Ou seja: não tem nem nunca teve qualquer memória viva dos feitos de Carlos Lopes, Fernando Mamede, Aniceto Simões, Hélder Jesus, Domingos Castro e de tantos outros atletas treinados por Moniz Pereira. Ele tinha, por exemplo, poucos meses quando Carlos Lopes ganhou a maratona olímpica, em Los Angeles.
Mas há méritos que se reconhecem mesmo por quem não foi testemunha deles. Por isso, vale a pena recordar agora uma parte da entrevista de Nélson Évora que não cheguei a incluir, na íntegra, na edição final que foi publicada na última edição da VISÃO. Estávamos a discutir o estado do atletismo português. E o campeão do triplo salto respondeu assim: “O atletismo em Portugal arrefeceu muito. Há talentos, mas não sei se há alguém para os aproveitar e desenvolver. Em Portugal temos que repensar toda a estrutura desportiva, a forma de captar novos valores, de os formar, dar-lhes estabilidade. As pessoas não podem pensar que, sem fazerem nada, vão sempre continuar a aparecer, de um momento para o outro, atletas como a Naide Gomes, o Francis Obikwelu, o Rui Silva, o Carlos Calado. A verdade é que esse foi um momento de ouro e um momento que só existiu graças a alguém, que soube construir as bases para que ele acontecesse. Foi graças ao prof. Moniz Pereira que, anos antes, construiu uma máquina de atletismo, que durou muito tempo.”
Recordemos outra vez: quando Nélson Évora começou a praticar atletismo ao mais alto nível, já Moniz Pereira estava retirado dos grandes palcos da alta competição. Mas a influência do “velho professor”e a sua história continuaram a perdurar nas gerações seguintes, de uma forma sempre tão presente que o último campeão olímpico português não se esqueceu de o referir, por sua livre e espontânea vontade, durante uma entrevista.
Essa é, de facto, a melhor homenagem que se pode prestar à memória de Mário Moniz Pereira, falecido no dia 31, aos 95 anos: a de que, já em vida, recebeu o reconhecimento, sincero e livre, de todos os atletas e amantes do desporto. É natural: os grandes revolucionários nunca são esquecidos.