O que têm em comum Tony Blair e Kamala Harris?
Nos anos 80, quando o Reino Unido virou radicalmente à direita, sob o governo neo-liberal da dama de ferro conservadora Margaret Tatcher, o Partido Trabalhista entrou em crise. Apesar da enorme contestação social, da guerra aos sindicatos, das baixas de impostos às empresas, da perda de direitos dos trabalhadores, Tatcher venceu e os trabalhistas perderam sempre.
Até que veio Tony Blair e uma promessa de mudança. Surgiu o “New Labour”, abandonando narrativas tradicionais e aderindo a uma ideia moderna de “Socialismo de Mercado”. A terceira via, como lhe chamou Tony Blair, era um conceito de estado social liberal, mais à esquerda que a direita e mais à direita que a esquerda. Blair procurava reconciliar Capitalismo com Estado Social, empresários com trabalhadores e, sobretudo, eleitores com o Partido Trabalhista.
Margaret Tatcher foi primeira-ministra durante mais de uma década. Liderou o país numa guerra, transformou a economia nacional e mundial, sobreviveu a um atentado bombista, mas quando lhe perguntaram qual foi o seu maior feito político, Tatcher respondeu: O New Labour.
A viragem à direita tem levado a esquerda democrática a posicionar-se ao centro. Foi assim com Tatcher e Blair. E assim foi com Trump e Harris. No pós-Obama, a esquerda americana sonhava com as promessas de Bernie Sanders de impostos justos aos mais ricos e a criação de um serviço público de Saúde. Pouco depois, via a sua esperança renascer numa Ocasio-Cortez emergida das bases do povo, pronta a combater as elites conservadoras, privilegiadas e distantes de Washington. Estava longe de imaginar que, oito anos depois, a candidata presidencial do Partido Democrata envergaria, com orgulho, a medalha de ser a favor do uso e porte de armas.
De facto, Trump foi desenterrar conquistas adquiridas, como o direito ao aborto e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, e parece ter feito a sociedade regredir dez ou vinte anos na discussão política. Essa regressão tapou o espaço aos políticos e pensadores mais progressistas, adiou a discussão sobre assuntos prementes aos tempos atuais – a crise climática, a inteligência artificial ou novos direitos e liberdades individuais como a eutanásia e os direitos trans. E a esquerda regrediu, também, reagindo pela necessidade de justificar as velhas conquistas ao invés de marcar a agenda com novas ideias.
A capacidade da direita em marcar a agenda e as narrativas colocou o maior dos açaimes à esquerda. Qualquer nova ideia, novo progresso, nova solução ou corrente de pensamento, é imediatamente apelidada de radical ou comunista. E se há coisa que a esquerda mais tem medo é de ser vista como radical – por mais radicais que sejam as agendas atuais de alguma direita que vence tantas eleições…
Na crise da habitação, na falta de progresso dos salários e na qualidade de vida, nas dificuldades dos serviços públicos de saúde, na incapacidade dos sistemas de ensino de se modernizarem, a direita promete a solução milagrosa do mercado e da privatização. A esquerda não tem uma mensagem, uma narrativa, é incapaz de apresentar uma visão e uma ideia, sempre com o medo constante de parecer muito radical. Aqui jaz o maior labirinto que a esquerda enfrenta – se a direita defende a manutenção do sistema, do status quo e das relações de privilégio e de poder, e a esquerda é quem luta pela transformação da sociedade; como é que a direita conseguiu corporizar a ideia de mudança e a esquerda ficou incapaz de apresentar algo diferente? A esquerda está perdida no labirinto e incapaz de se encontrar sequer a si própria.
E o problema não está apenas na narrativa e na polarização do discurso político, é também um problema de forma. O discurso à direita tem-se tornado cada vez mais populista. Nos EUA e na Europa, a direita apela a sensações – a sensação de que os imigrantes são perigosos ou vêm roubar os nossos trabalhos, a sensação de que a economia está muito mal, a sensação de que os serviços públicos estão em colapso, etc. Mesmo quando os dados contrariam a teoria – a economia americana cresceu mais com a presidência Biden; não há correlação entre criminalidade e imigração em Portugal; na Covid, foram muitos os privados a recusar prestar serviços de saúde e a levar as pessoas ao público.
A esquerda tornou-se excessivamente tecnocrata. Justifica-se em números e dados, realidades mensuráveis, fontes credíveis, informações fidedignas (tal como algum centro-direita que ainda resiste). O discurso à esquerda é uma tentativa constante de credibilizar as suas novas posições – para a legalização do aborto, não bastou apelar à liberdade e à emancipação do corpo da mulher, foi preciso sustentar-se na realidade de mortandade gerada pelos abortos clandestinos. A esquerda engavetou a emoção e confiou excessivamente na razão.
Agora, vivemos numa sociedade de consumo rápido e imediato. Apesar de haver tanta informação e tão mais facilmente acessível, as pessoas leem cada vez menos, estudam cada vez menos, questionam-se cada vez menos e as sensações alimentadas pelos fake news e pelos discursos populistas proliferam. E o que faz a esquerda para contrariar a inverdade? Escuda-se em mais dados, mais fontes, mais informações fidedignas e plataformas de fact-check que são liminarmente ignoradas pela maioria das pessoas.
Com isto pretende-se defender que a esquerda deve ceder ao populismo para ganhar? Não. Mas deve reaprender a ser popular. A arriscar, falar de forma clara para as sensações das pessoas, a combater os seus adversários, não ceder a interesses e nunca ter medo de defender o que acredita.
Bernie Sanders diz que o Partido Democrata desconectou-se da classe trabalhadora americana e cedeu aos interesses económicos. Tony Blair já o tinha feito nos anos 90. Há mais de quarenta anos que os rendimentos reais das pessoas não acompanham o crescimento económico. Isto significa que a economia cresce, há cada vez mais dinheiro, mas ele não está a chegar aos bolsos do cidadão comum. Onde é que ele está? Talvez seja a esta resposta que a esquerda tenha de voltar a chegar, para sair do labirinto.
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