O que tu acabaste de fazer, Nélson, não é monstruoso, como tinhas desejado. É lindo, mais lindo do que o Rio de Janeiro. É uma longa soma de palavras porque só uma é escassa para descrever o que conseguiste. Sim, vais ter um filme sobre a tua história, e só pode ser um épico, mas nada vai igualar a crua realidade.
Não eras tu que estavas morto para o atletismo?
Não foste tu que, depois de teres sido campeão olímpico em 2008, acabaste na mesa de operações, derrotado e desacreditado? A rasgar a perna para aliviar o mal? Primeiro a tíbia e depois os joelhos?
Não foi a ti que andaram a meter e a tirar parafusos e cavilhas onde só deviam existir ossos e tendões, a abrir e a fechar carne como se fosse um pedaço de tecido?
E como é que com essas cicatrizes todas ainda te atreves a saltar?
A arriscar quebrar tudo de novo? A tua saúde, o teu futuro?
Sim, o osso calcificou e ficou até mais forte. Mas isso dizes tu, dizem os médicos.
Como é que, aos 32 anos e depois de tanta dor, ainda tens força para isso? Não vês que és um avô aí no meio dessa rapaziada?
Quem és tu, Nélson Évora?
Tu não pertences a este mundo, admite de uma vez por todas. Tu não existes ou pelo menos não és humano. Tu és um ET que nos veio visitar, o primeiro a ousar sair lá de uma galáxia distante até este canto do universo.
No estádio olímpico da cidade maravilhosa, tu inventaste a roda, descobriste a pólvora, foste à lua num pé e regressaste noutro. Reduziste o impossível a pó.
A esta hora já devem estar a chamar-me nomes ou a dizer que eu é que sou um alien – ou um alienado.
E a ti vão querer obrigar-te a dizer que o sexto lugar é uma desilusão, só porque sonhaste com as medalhas – e não o escondeste. Que desplante, o teu!
Vão dizer que falhaste.
Vão talvez dizer-te que todo o esforço foi em vão.
Que me perdoem os gigantes Carlos Lopes e Rosa Mota, heróis inesquecíveis e inalcançáveis do desporto nacional, mas o que este homem fez está muito para lá do desporto. Ele ofereceu-nos a todos, do motorista ao enfermeiro, do advogado ao pedreiro, do empresário ao professor, do sapateiro ao cientista e até aos nossos queridos Carlinhos e Rosinha, uma cruzada de fé inabalável. De perseverança. Sacrifício. Paixão.
Quando meio mundo o punha fora de batalha, ele acreditou. E foi à luta. Diária. Primeiro na enfermaria, depois na fisioterapia e aos poucos de volta à pista. Ao fim de um ano ainda sentia dor, desconforto. Voltou ao bloco operatório, ressuscitou de novo para os treinos, desafiou todos os limites do corpo e da mente. Porque acima de tudo, como ele próprio reconhece, foi uma guerra psicológica que travou. A cabeça manda e a dele mandou-o continuar a saltar. Não desistir.
À sua maneira, a proeza de Nelson supera até as de Usain Bolt ou Michael Phelps, que me desculpem os que veem aqui alguma heresia olímpica. Não me refiro às medalhas nem aos resultados estratosféricos, com certeza inigualáveis na pista e na piscina, no caso das duas lendas da atualidade. Mas nenhum deles desceu ao inferno para de lá voltar com a grandeza dos grandes.
Tanto o jamaicano como o americano geriram com inteligência a carreira, com inúmeros momentos de pausa, férias e festas, para depois atacarem em força nos principais eventos. Nélson não é melhor, longe de mim atrever-me a seguir por aí. Nélson é diferente: ele morreu – e, no entanto, afinal, ainda respirava, ainda vivia, ainda tinha dinamite para dar (pedi-lhe esta emprestada).
A dor acabou hoje, Nélson. Por muito que alguém queira desvalorizar este sexto lugar olímpico, ele é fruto de uma dedicação sem contemplações. Uma entrega total. É esse o teu legado. Olha em frente se vierem desdenhar com a cantiga das vitórias morais. Ou a outra da mentalidade pequena. Um sexto lugar nos Jogos Olímpicos não é para todos. Um sexto lugar nos Jogos Olímpicos para um ressuscitado deve ser caso raro.
Não há medalha mas não precisas. Tu acreditaste, tu lutaste, tu estiveste lá. Entre os maiores, como há oito anos. Nunca ninguém te poderá tirar esta vitória. És outra vez campeão olímpico. À tua maneira.