Qual a língua mais falada em Londres? Para quase todos que sabem que Londres é a capital de Inglaterra, a resposta parece óbvia, mas para a Uber, a questão é um pouco diferente: as autoridades britânicas querem obrigar os motoristas, taxistas e afins a provarem que dominam o inglês em provas escritas ou orais. E a Uber diz que o requisito pode levar ao despedimento de milhares de motoristas profissionais que hoje trabalham na capital britânica.
Londres é a capital da língua inglesa, mas é também o que de mais parecido há com a capital do mundo – talvez só comparável à bíblica Babel no número de idiomas que alberga. E a Uber não deixa de ter razão: o que não faltam é bons taxistas que não pertencem aos 80% de motoristas que as autoridades acreditam que conseguirão ter positiva nos testes de inglês.
Faz sentido que um taxista de Londres não domine o inglês? Quem nunca se indignou no Algarve com um barman que não fala português que atire a primeira pedra. Sim, o requisito linguístico pode indiciar a antecâmara de uma “xenofobia de estado”, mas também não é preciso ser sociólogo para admitir que uma pessoa que viva em Inglaterra e não domine o inglês, provavelmente terá maior dificuldade em conhecer direitos e deveres, em lidar com serviços sociais e comunitários, está mais vulnerável e dependente, e eventualmente arrisca-se a ter um maior número de reclamações de todos os turistas que ainda têm a mania de que em Londres se fala inglês. No limite, essa pessoa poderá ter dificuldade em perceber o contrato que assinou com a Uber.
Do lado do consumidor há outro cenário curioso: Como reagirão os uberófilos que se insurgiram nas redes sociais contra os serviços dos táxis portugueses, quando forem conduzidos por um motorista que nem sequer consegue perceber um pedido para desligar o ar condicionado? Bom, são contas de outro rosário que, obviamente, não impedirão a Uber – ou qualquer concorrente – de contornar a barreira linguística com uma funcionalidade na app que permite a cada cliente ativar ou desativar remotamente o ar condicionado do carro.
Se, por sua vez, o condutor não conseguir pedir em inglês para desligar o ar condicionado porque está a ficar febril… é problema do condutor, que terá de se conformar com a temperatura dentro do carro, ou enveredar pelo espírito de guerrilha e desligar o ar condicionado sempre que um cliente o ligar na app de telemóvel.
Claro que não se pode culpar a tecnologia que, surpresa das surpresas, é e será sempre mais rápida que qualquer lei que a humanidade crie. As chatices são exclusivas dos humanos – os bits e bytes nada têm a ver com o que fazemos com eles. Há muito que se sabe disso: Já em 2000, Larry Ellison, líder da Oracle, deu uma entrevista ao então diretor da Exame Camilo Lourenço, e trouxe a evidência à tona, sem abdicar dos galões de enfant terrible: «A nova economia não existe».
Poucos académicos terão orgulho em citar o truculento Ellison, mas a verdade é que o executivo tinha razão: a bolha das dotcom rebentou poucos meses depois da entrevista. E os atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque, fizeram o resto. Quase todas as startups que pululavam em Wall Street prometendo uma economia 2.0 desapareceram. No final, a humanidade continuou a ser o que sempre foi: um conjunto de pessoas que comem, dormem, estudam, trabalham, namoram, procriam, divertem-se, descansam, adoecem, e tentam viver o melhor que sabem, mas acabam sempre por morrer. As tecnologias podem mudar a forma como muitas destas coisas são tratadas – mas a regra elementar da economia é sempre a mesma: a oferta e a procura valorizam-se na mesma proporção das expectativas de quem está disposto a investir na abundância ou na escassez. Pode parecer uma regra complicada, mas qualquer chefe de família consegue aplicá-la, mesmo sem ter de usar uma app de compras de supermercado – apesar de a app lhe poupar tempo, deslocações e esforço a carregar sacos de compras.
Na Comissão Europeia, o fracasso da nova economia já terá sido remetido ao esquecimento. Ninguém disse que vinha aí uma economia que, agora sim, é mesmo nova (a “nova nova economia”, portanto), mas não falta quem considere inevitável a proliferação de negócios que podem ser geridos a partir de uma esplanada de Silicon Valley e que apenas precisam de Internet para prestar um serviço em Alvaiázere, que recorre a fornecedores de Fornos de Algodres e profissionais de Castro Marim e contrata distribuidores que operam em Badajoz. É possível que o consumidor pouco se importe com quem prestará o serviço, as condições laborais ou o respeito pelas regras da concorrência no mercado local. E ainda bem que assim é. O que não impedirá até os maiores detratores de Larry Ellison de constatarem o seguinte: nenhuma plataforma tecnológica, por mais avançada que seja, deverá suplantar as leis comerciais, laborais, fiscais, higiénicas e do bom senso de um país.
Claro que as tecnologias podem obrigar a mudar as leis – e a chicana fiscal protagonizada por quase todos os gigantes tecnológicos que optam por se sediar na Irlanda ou no Luxemburgo quando fazem negócios na Europa é a prova de que o fator tecnológico tem mesmo o condão acelerar a mudança. E há muitos mais exemplos: A chegada de carros autónomos também deverá obrigar a mudar o código da estrada; ninguém respeita as leis da aviação civil e por isso as autoridades nacionais criaram uma proposta de lei para o uso de drones; a robótica doméstica também vai necessitar de legislação própria; e até o governo português já apresentou uma proposta de lei que não exige que os condutores de Uber dominem o português, mas exige que sejam credenciados para praticar a profissão (ao contrário da Uber inglesa, a Uber portuguesa congratulou-se com a proposta de lei, apesar de contrariar a lógica inicial da marca, que se distingue por permitir que todas as pessoas possam ser motoristas a tempo inteiro ou part-time).
As leis podem mudar, mas há princípios básicos num mercado livre – que ainda é o menos mau dos mercados possíveis. Um Estado deixa de respeitar as leis da concorrência quando impede que empresas locais definam a bandeirada e permite que a Uber, a Cabify ou qualquer outra empresa, decida, ao arrepio da lei, o custo de viagem que os motoristas associados vão cobrar em vários países. Isto é óbvio para qualquer pessoa que se diga a favor do mercado livre – e serve para qualquer setor de negócio, mas por algum motivo insondável não falta quem considere que se trata de uma inevitabilidade (especialmente se afetar apenas o negócio ou o emprego do vizinho…).
Mas as inevitabilidades não são todas iguais. Alain Carpentier, um dos pais da cirurgia cardíaca moderna e entrevistado do número da Exame Informática que sai no final de agosto, rejeita liminarmente fazer um implante de coração em pessoas que não estão doentes e que apenas querem ter melhor desempenho físico. Sobre a existência de ciborgues, rematou com uma pergunta à assessora de imprensa que estava ao lado: «E a menina, gostava de ser ciborgue?». A resposta a assessora é sintomática: «por enquanto, não».
É possível que uma parte dos humanos não queira ser ciborgue – mas o facto de sermos ciborgues torna-nos mais ou menos humanos? A mesma tecnologia que nos ajuda a prolongar a vida com a substituição de um órgão doente não estará a contribuir para alterar a forma como encaramos os limites e a condição de humanos? E no tempo em que a tecnologia criar uma divisão entre humanos e ciborgues, será que os últimos, eventualmente mais resistentes ou fortes, continuarão a pugnar pelos direitos dos primeiros? E se forem os ciborgues que estão mais vulneráveis e em perigo, será que os 100% humanos terão a disponibilidade moral e política para os defender enquanto humanos de pleno direito?
As tecnologias mudam a forma como as coisas funcionam – mas não há muitas dúvidas de que as leis são demasiados importantes para serem só os respetivos beneficiários da inovação a decidir. Um exemplo: qualquer pessoa consegue fazer um download ou um streaming pirata na Internet, mas retirar aos autores o direito de decidirem a quem vendem o seu trabalho será sempre – mesmo com todas as inevitabilidades que aí vêm – uma violação de um elementar direito pessoal. E talvez para tentar solucionar este dilema semi-insanável, a Comissão Europeia já fez saber, por mais de uma vez, que pretende alterar os direitos de autor. Resta saber em que sentido pretende ir: vai recusar a boleia das tecnologias e proibir a livre cópia ou, pelo contrário, vai permitir que qualquer site partilhe cópias piratas enquanto outros, em condições similares, pagam royalties e respeitam a lei?
Algures no século 16, os índios terão passado por uma sensação similar, depois dos primeiros contactos com os europeus. Tudo começou com a venda ao desbarato da matéria-prima; seguiu-se a guerra, a perda do poder de ditar as leis, e a inevitável perda do território e do povo. Hoje, é improvável que um índio consiga apanhar um táxi na sua língua autóctone. Ironia do destino, há quem defenda que os taxistas de Londres, se quiserem, possam falar num dialeto ameríndio em vez do inglês. Perfila-se um novo filão de negócio para os tradutores e intérpretes eletrónicos.