A 1 de novembro, assinalamos os 270 anos de um dos mais profundos traumas coletivos da História de Portugal: o terramoto de Lisboa, de 1755. Naquele dia, o solo tremeu, as igrejas desabaram, o mar invadiu a Baixa. Milhares morreram – muitos deles em oração, no dia de Todos os Santos. A cidade ardeu, e com ela ardeu uma certeza filosófica que dominava a Europa: a de que vivemos no “melhor dos mundos possíveis”.
François-Marie Arouet – mais conhecido por Voltaire – não estava cá. Nunca pôs os pés em Portugal. Mas, a milhares de quilómetros de distância, em Genebra, o filósofo sentiu o chão tremer sob os alicerces da razão europeia. E escreveu. Não um conto irónico, como Cândido, mas um poema filosófico cru, desesperado, dorido: Poème sur le désastre de Lisbonne (1756).
Hoje, em pleno século XXI, enquanto a democracia vacila sob o peso da desinformação, do ressentimento e do autoritarismo disfarçado de “vontade popular”, talvez seja tempo de reler não o Voltaire literato – mas o Voltaire filósofo. Aquele que se debruçou sobre a liberdade humana, os fundamentos da moral e a natureza da alma, não para oferecer consolos, mas para exigir lucidez.
Voltaire não era ateu no sentido estrito – acreditava num “grande relógio” do Universo, num Deus-Relojoeiro, como escreveu nas Cartas Filosóficas (1734). Mas rejeitava com veemência a ideia de que Deus intervém nos assuntos humanos, punindo ou recompensando. Para ele, a moral não vem do céu, mas da terra – da experiência, da empatia, da razão prática.
No Tratado de Metafísica (1734), Voltaire pergunta: se a alma é imaterial, como pode sofrer? Se Deus é bom, como permite o mal inocente? Questões que o terramoto de Lisboa tornou urgentes – e que hoje ressoam quando vemos crianças a morrer no Mediterrâneo ou hospitais a colapsar por falta de políticas públicas ou um genocídio descarado.
Como escreve o historiador português José Eduardo Franco, especialista em Iluminismo, “para Voltaire, o sofrimento inocente – como o das crianças esmagadas em Lisboa – era incompatível com a ideia de um Deus simultaneamente bom, justo e omnipotente”.
Muito se fala da defesa de Voltaire pela liberdade de expressão – e com razão. Mas raramente se sublinha que, para ele, a liberdade nunca era um direito absoluto desligado da responsabilidade moral. Numa carta de 1761, escreveu claramente: “Sou partidário de dizer toda a verdade, mas não de a dizer a toda a gente, nem em todos os tempos, nem em todos os lugares.”
Numa era em que a liberdade de expressão é invocada para espalhar ódio, desinformação ou teorias da conspiração, esta distinção é crucial. Voltaire não defendia o direito de ofender por ofender, mas o direito de questionar o poder – religioso, político, ideológico – em nome da justiça.
E hoje? Quando a terra treme novamente
O terramoto de 1755 foi geológico. Os nossos são políticos, sociais, ecológicos. A extrema-direita cresce não por acaso, mas como resposta emocional a um mundo que parece descontrolado – tal como, no século XVIII, o fanatismo religioso floresceu após o desastre lisboeta.
Voltaire viu isso com clareza: o medo gera fanatismo; a incerteza alimenta o desejo de certezas absolutas. Mas, em vez de ceder a elas, propôs outra via: a do trabalho paciente da razão, da crítica, da reforma gradual.
Numa carta de 1765, escreveu: “O melhor remédio contra a superstição é a filosofia.” E por “filosofia” entendia não o academicismo, mas o exercício constante de pensar por si mesmo, de duvidar das narrativas fáceis, de defender os perseguidos – como fez, de forma incansável, no caso Calas, em que salvou um protestante injustamente condenado à morte na França católica.
Cultivar o jardim – mesmo quando o mundo arde
É célebre a frase final de Cândido: Il faut cultiver notre jardin. (“É preciso cultivar o nosso jardim.”) Muitos a interpretam como um recuo individualista. Mas, como mostra o historiador Jonathan Israel, trata-se antes de um apelo à ação concreta: não esperar por sistemas perfeitos, mas agir onde se está, com decência e responsabilidade.
Em tempos de polarização, de redes sociais que amplificam o pior de nós, cultivar o jardim significa: escutar antes de julgar; defender instituições democráticas, mesmo quando são imperfeitas; recusar a lógica do “nós contra eles”; lembrar que a moral começa onde termina o discurso de ódio.
Voltaire nunca esteve em Lisboa. Mas, se voltasse hoje, talvez nos dissesse, com ironia e tristeza: “Vocês ainda estão à procura de um salvador? Enquanto isso, o jardim secou.”
Um apelo aos guardiões da razão
Neste ano em que se cumprem 270 anos sobre o terramoto de Lisboa, e em que os discursos de ódio se disfarçam de patriotismo, a História interpela-nos com urgência. Os intelectuais, os académicos, os estudiosos, os artistas, cantores, poetas, todos, têm uma responsabilidade cívica inadiável. Não basta publicar em revistas especializadas ou ensinar nas universidades. É preciso descer à praça pública, ocupar os debates televisivos, escrever para o grande público, explicar com clareza por que a democracia não é um dado adquirido, mas um frágil jardim que exige rega diária. Voltaire não se calou perante a injustiça; não se escondeu na torre de marfim.
Hoje, em Portugal – bastião democrático ainda resiliente, mas sob pressão –, os herdeiros do Iluminismo devem seguir o seu exemplo: iluminar, questionar, resistir com palavras e com atos.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.