Não sei se o leitor se deu conta, mas estamos em plena campanha eleitoral. A que interessa: a do Benfica. A segunda volta é já dia 8 de Novembro e, como em tudo o que realmente importa, há uma ferida a sangrar. Uma ferida antiga, que não devia doer só a nós, os do Benfica, mas a todos os portugueses. Porque é congénita. É visceral. É uma fenda que nos atravessa a todos — desde o Portugal das Sesmarias ao da organização feudal — e que, de tempos a tempos, reabre expondo o seu estrago, dividindo-nos em dois.
As partes que se opõem conforme o tempo e o espaço vão variando ligeiramente nas sensibilidades e nas coordenadas, mas, no essencial, mantêm-se mais ou menos constantes. Falo do país de D. Miguel e do país dos liberais. Do país republicano e das incursões monárquicas de 1912. Dos bandos do PREC e das mocas de Rio Maior. Falo, hoje, do país do Chega e do país da Iniciativa Liberal. Um Portugal cujas matizes, cores e ideias podem ir variando, mas cuja guerra tem sido sempre a mesma: uma tensão antiga entre o campo, que encara a mudança como ameaça à ordem natural das coisas, e a cidade das classes letradas, que vê a tradição e o costume como obstáculos ao avanço civilizacional.
Nestas eleições do Benfica, e no duelo Rui Costa/João Noronha Lopes, tem-se assistido a este embate de raízes fundas na genealogia das eras. De um lado, o país legitimista, da fidelidade e da linhagem: Rui Costa, o herdeiro, símbolo da continuidade, o número 10 que “é dos nossos”. Do outro, o país liberal, do contrato e da reforma: João Noronha Lopes, o estrangeirado, do mérito e do método, mensageiro da promessa de uma nova ordem.
Só que ao contrário dos fortes, campos e ruas de outros tempos, a batalha de hoje trava-se — exacto, adivinhou — nas redes sociais. E eu, que tinha jurado nunca mais lá pôr os pés, entusiasmado que ando com esta disputa — Deus me perdoe! — não tenho feito mais nada desta vida.
E o que se vê então nessas cloacas digitais? Bem. Vê-se o que já se tinha visto, com a diferença de caber no bolso. Por um lado, há o X, o território de João Noronha Lopes: a Lisboa esclarecida, mais nova, mais escolarizada, a burguesia digital que se vê como razoável, que acredita que saber o método justo equivale a ser moralmente justo. Depois, há o Facebook, onde domina Rui Costa: o resto do País, onde as pessoas são mais velhas, mais pobres, e reconhecem nele a segurança do menino que, aos oito anos, começou a jogar de encarnado. É gente que vive o Benfica como se vive em família: sem planos estratégicos, mas com amor. Vê o Preço Certo e comenta em maiúsculas, como quem berra da bancada, movida por fé e instinto. Tudo certo. Tudo errado. Todos irmãos. E um potencial infinito de desentendimento. Só que — convenhamos — a sociologia não vê pessoas, só detecta padrões.
É nesse vazio que prosperam as empresas de comunicação: alimentam a guerra como quem dá de comer ao diabo. Também no século XIX havia industriais liberais a pagar a frades legitimistas para escrever panfletos a seu favor. Hoje é igual: há quem difame conforme o soldo e o alvo. A João Noronha Lopes cola-se o rótulo “Vale e Azevedo 2.0”; a Rui Costa chamam-lhe “banana”, “impreparado”, “Ruie”. Nada de novo. D. Miguel era o “monstro de Alcobaça” e, como Noronha, também não merecia. Eram assim os avençados de outrora, de batina e pena de ganso, a explorar a credulidade e as paixões das almas simples.
E então, acicatados pela virulência artificial, dos tais bots, das tais contas falsas arranjadas pelos tais profissionais da infâmia, no esgoto das redes sociais, andam todos às cabeçadas.
O problema, amigos, não está no campo ou na cidade, nem na esquerda ou na direita, no vermelho velho ou no vermelho novo. Está antes na incapacidade moral e interior de escutar o outro, de dominar os próprios ressentimentos, de agir com carácter.
As leituras sociológicas apenas descrevem os sintomas, não o sentido moral do que está em jogo. Porque o mal não é um “problema social”, é uma coisa que trazemos connosco. E, em última análise, é o temperamento dos corações que tem a palavra final em qualquer disputa. A questão já não é “quem tem razão”, mas quem tem alma. E se ela está em condições.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.