
Estou há quase 5 horas cristalizado neste assento ergonomicamente concebido para anular a vontade de me levantar e passear por estes corredores de movimentos coartados. A hospedeira da primeira classe assomou-se agora mesmo à cortina, a olhar-nos mortais de modo condescendente. É uma extrovertida de vestido encarnado, curto, de fundo decote, sapatos de salto muito alto, cabelos loiros platinados – incongruente numa companhia aérea americana no século XXI; as colegas das classes inferiores primam pela pacatez de traje e atitude. Não percebo nada de americanos, eu que passei as últimas três décadas a achar que percebia. Defronte do meu nariz está um monitor onde posso aceder uma enorme lista de filmes, todos em formato adaptado para viagens de avião – ou seja, todos reeditados e encurtados por forma a produzir uma experiência cinéfila inócua e incompleta. Há também as séries, mas nem me atrevo porque vi na lista algo sobre as Kardashians. De vez em quando há um movimento agressivo de luz, as cortinas de plástico das janelas do avião, levantadas à procura de um ponto de referência lá em baixo. Por debaixo de nós corre o Oceano Atlântico, mas está a uma distância tal que até as tempestades são invisíveis. De vez em quanto nota-se, no ar, que alguém deu um pum. Há pouco, quando estava a delirar entre a noite de ontem e o dia de hoje, derreado de sono, passou por mim um fantasma de outras viagens de avião quase esquecidas, de antanho, do tempo em que andar de avião era expressão de privilégio. As viagens de avião acarretavam a arte esquecida do polimento, do controlo da flatulência, da civilidade, de vir de casa minimamente lavado. Não sei se goste desta democratização vertical. O mundo está mais acessível, mas também está menos especial e eu entretanto envelheci o suficiente para já não achar piada. Perdem-se umas, ganham-se outras.
Entretanto, passamos por turbulência. O avião sacode o suficiente para ajudar a lembrar que pode cair. A perspectiva do avião cair dá um bocadinho de frisson à coisa, mas é uma alegria passageira.
Estes últimos dias foram históricos para a humanidade mas acho que poucos se aperceberam disso. Soubemos que na América dos nossos dias é afinal possível ser publicamente nazi, disseminar doutrinas fundamentadas em ódio social, e não ser punido por isso. Há uma fatia razoável da população americana que não tem de vergonha de ser racista, de ser ignorante, de ser misógina. Nem mesmo nas minhas mais sombrias expectativas imaginei que tal pudesse acontecer neste século XXI. Moro num país em que a memória da invasão alemã ainda está presente tanto na geografia como no mapa mental dos meus concidadãos – a Noruega. Alguém que tentasse passear uma bandeira nazi por qualquer parte da Noruega teria os minutos contados.
Estes dias foram históricos porque demonstraram que a nossa crença clássica de que a liberdade de expressão é um direito inalienável deixou de ser válida. A América dos nossos dias parece ser a prova consagrada de que a liberdade de expressão que não seja acompanhada de uma educação cívica esmerada redunda num monstro social autofágico que arrasta tudo para a barbárie. Os valores democráticos que prezamos e com os quais construimos a nossa vida moderna não são, afinal, nem completos, nem discretos. Se nos agarrarmos à liberdade de expressão sem prestarmos atenção à educação para o civismo e à aceitação da diferença, corremos o risco de deixar destruir todos os valores que pensamos prezar. Não se pode deixar que um neo-nazi se resguarde nos valores da nossa sociedade para a destruir. Não se pode deixar que um terrorista islamista se aproveite dos valores da nossa sociedade para a destruir. Não se pode deixar. Não.