Os sinais já vinham de longe. Há muito que se pressentia que a geopolítica caminhava num sentido contrário ao do rumo da globalização. Por isso, ainda antes da pandemia, da invasão russa da Ucrânia e das outras crises sucessivas que nos têm baralhado as contas, já António Guterres tinha alertado, em setembro de 2019, para o que poderia estar a desenhar-se no horizonte: “O mundo a dividir-se em dois, com as duas maiores economias da Terra a criarem dois mundos separados e concorrentes, cada um com a sua moeda dominante, regras comerciais e financeiras, a sua própria Internet e capacidades de Inteligência Artificial, e as suas próprias estratégias geopolíticas e militares.”
Nas últimas semanas, este movimento ganhou uma nova e vertiginosa aceleração, ainda com consequências imprevisíveis. Primeiro, com a declaração de guerra de Donald Trump ao resto do mundo (com a notória exceção da Rússia…), através da arma, que brandiu durante toda a campanha eleitoral, que o fez regressar à Casa Branca: a imposição daquilo a que ele chama “tarifas recíprocas”, mas que constituem, na verdade, um autêntico ataque nuclear à ordem mundial existente. Depois, com a resposta “olho por olho” da China a essas mesmas tarifas, a demonstrar que Pequim não tem qualquer receio em escalar uma guerra comercial e, porventura, até quer aproveitar este momento para ganhar vantagem geopolítica: apresentar-se às outras nações como a única superpotência que respeita os acordos internacionais e, portanto, confiável aos olhos do resto do mundo, que se encontra estupefacto com os ziguezagues contínuos do novo poder em Washington.
Vivemos, portanto, num tempo de extrema volatilidade, mas que deve ser também de clarificação. De repente, vemo-nos constrangidos a redefinir as nossas parcerias e, se calhar, a mudar a identificação dos nossos adversários. Temos um Presidente dos EUA que se ufana, publicamente e com o mau gosto do costume, de declarar que pôs metade das nações do mundo dispostas a “beijar-lhe o rabo” (sic) para que ele aceite renegociar o pacote de tarifas que decretou unilateralmente. Mas também o mesmo Presidente dos EUA que, após criar o caos na economia global, decide adiar a entrada em vigor dessas mesmas tarifas por um período de 90 dias, à espera que o resto do mundo capitule aos seus ditames – ou, para usar a sua linguagem, que lhe vá “beijar o rabo”. E, não nos esqueçamos, também o mesmo Presidente que repetidamente nomeia a China e a União Europeia como os principais inimigos dos EUA.
Ninguém se pode admirar que, num curto espaço de tempo, se tenham alterado as prioridades. Lembram-se como, ainda há poucos meses, a preocupação das instituições europeias, com receio de violação de dados, era a de tentar restringir ou proibir o uso de componentes das empresas chinesas Huawei e ZTE nas suas redes de telecomunicações 5G? Pois, agora, pelos mesmos motivos, a Comissão Europeia passou a fornecer telemóveis descartáveis e computadores básicos aos altos funcionários que viajam para os EUA – com medo de ver os seus segredos devassados.
A desconfiança alastrou-se ou somente mudou de geografia? E vai ser mesmo preciso escolher um lado nesta disputa que se avizinha ou será que ainda há espaço para se conseguir encontrar um caminho próprio e independente face às duas grandes potências? São muitas as dúvidas e inquietações que necessitam de ser ponderadas, e quase todas elas de resposta difícil e complexa. Mas há, no entanto, várias certezas que precisam de começar a ser enfrentadas, sem rodeios. Já não é sensato pensar que Donald Trump está a fazer bluff. Nem é admissível continuar a ignorar a sua sistemática destruição da democracia americana e da ordem global que, apesar de tudo, estava assente em tratados e acordos internacionais. E, acima de tudo, temos de preparar-nos para tempos de grande instabilidade, em que vai ser preciso não ter medo de enfrentar o desconhecido, saber procurar novas alianças baseadas no interesse comum e ir em busca de novos parceiros económicos.
Neste contexto, não deixa de ser quase surreal a forma como a atual situação internacional tem estado quase ausente da atual campanha eleitoral para as legislativas de 18 de maio. Ao ouvir os debates e a maior parte das intervenções públicas, quase parece que todos têm planos blindados às convulsões internacionais, quando apresentam as suas soluções para os problemas do País. A verdade é que uma campanha eleitoral devia servir para ajudar a clarificar o que pensa e como age cada candidato. E, nos tempos que correm, o mais importante é tentar perceber como agirá um futuro primeiro-ministro em circunstâncias excecionais, como as que se adivinham para as primeiras semanas do novo Governo – quando as tarifas de Donald Trump baterem com força na Europa.
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