Em dezembro de 2023, num exercício de balanço semelhante ao desta edição, escrevemos na capa da VISÃO que o mundo tinha acabado de passar pelo “ano de todas as fraturas”. Havia razões evidentes para esse título, por causa dos acontecimentos que marcaram o final desse ano: o eclodir, mais violento do que nunca, do conflito no Médio Oriente e a demissão abrupta do governo de maioria absoluta em Portugal, que representou também o último ato dos “dias felizes” entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa. Tudo isto, num clima em que a crispação ganhava terreno na generalidade dos discursos políticos, aumentava a polarização em todas as latitudes, a guerra na Ucrânia começava a cavar divisões profundas na Europa e, um pouco por todo o lado, cresciam os sinais de revolta, num planeta a recuperar do trauma da pandemia da Covid-19.
Agora, um ano depois, é fácil constatar que os sinais de divisão ganharam ainda mais expressão ao longo dos últimos doze meses. E traduziram-se em muitas mudanças, cujas consequências vão, com toda a certeza, perdurar nos próximos tempos.
Este foi o ano em que cerca de dois mil milhões de pessoas foram chamadas a votar, nas múltiplas eleições que se realizaram em mais de sete dezenas de países, e em que, por isso mesmo, ficaram evidentes algumas tendências: a penalização dos que ocupavam o poder, a emergência de forças radicais, o esvaziamento acentuado do centro político e o crescimento do radicalismo.
Em sucessivas eleições, nas mais diversas geografias, os eleitores usaram o voto para exprimir a sua revolta. E fizeram-no sem demonstrarem a mínima preocupação com conceitos anteriormente valorizados como a estabilidade política ou a formação de maiorias políticas sólidas. O objetivo, em muitos casos, foi unicamente o de procurar castigar quem estava no governo – mesmo quando, como sucedia em diversos casos, os indicadores económicos eram positivos, embora essas “boas contas” nem sempre fossem percetíveis pela opinião pública.
De certa maneira, este foi o ano que encerrou um ciclo iniciado em 2016, com a eleição surpreendente de Donald Trump e o Brexit no Reino Unido: o princípio do fim de uma certa era de globalização e de uma ordem internacional estável, dominada pelos Estados Unidos da América. Esse caminho tinha sido interrompido com a pandemia – que deixou a nu a teia de dependências dos países em relação às cadeias globais de produção – mas foi depois retomado, ainda com maior vigor e ânimo, logo que desapareceram as máscaras anti-Covid, por todos os que se sentiam atingidos pela crescente desigualdade e a falta de oportunidades.
Este 2024 que agora termina pode ter sido o ano zero de uma nova era de extremismo, que ninguém consegue prever quanto tempo poderá durar. Sabemos, no entanto, que as mudanças que se espera que ocorram no próximo ano poderão ser muito mais radicais do que tudo o que vimos até agora. Até porque, desta vez, já ninguém é apanhado de surpresa. E, como acontece sempre no início de um novo ciclo, há sempre quem decide rapidamente mudar de convicções e tentar aproveitar a nova onda, para seu benefício ou como estratégia de sobrevivência. Sabemos que Donald Trump promete virar os EUA de pernas para o ar e que as ondas de choque da sua “revolução” vão fazer-se sentir por todo o planeta. A política de Washington vai transformar-se radicalmente, de uma forma nunca vista em muitas décadas, nomeadamente na sua relação com o resto do mundo. E os apelos ao isolacionismo vão repetir-se, por contágio, em diversos países.
A Europa vai viver, seguramente, um dos seus momentos mais difíceis, com a Alemanha e a França em dificuldades económicas e próximas do caos político. Com o eixo da União Europeia a deslocar-se cada vez mais Leste e com a força crescente dos partidos extremistas antidemocráticos, não será fácil manter a coesão do bloco, em especial nos assuntos relacionados com os direitos, liberdades e garantias.
Neste ano zero desta nova era de extremismo, que é também de polarização extrema, já se percebeu como o discurso dos partidos de centro-direita foi capturado pela retórica radical. Em especial nos temas relacionados com a segurança e a imigração. Pelos últimos sinais, nomeadamente a inenarrável operação policial na zona do Martim Moniz, em Lisboa, o que podemos esperar, no próximo ano, é que a distinção entre os dois discursos será ainda menor.
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