“Se eu comprar um bebé reborn e, antes de ele chegar, eu cancelar o pedido, é aborto?” Esta é apenas uma das múltiplas piadas suscitadas pelo fenómeno dos bonecos hiper-realistas e a forma como algumas “mães” andam a tratá-los – no caso, saída da página de Instagram Julius Sincero, uma homenagem brasileira à personagem Julius Rock, da série Todos Contra o Chris.
O gozo adensa-se no Brasil, país onde a realidade está a ultrapassar a ficção e onde os bonecos são cuidados como bebés humanos. O coletivo humorístico Porta dos Fundos acaba de lançar uma caricatura à situação num sketch intitulado Adulto Reborn, levantando a questão de saber se configura alienação parental quando uma mãe arranja um filho reborn e passa a preferi-lo aos filhos de verdade. Não perca umas boas risadas, numa rede social perto de si.
Por cá, também já se fazem graçolas com o assunto. Num episódio da rubrica Ninguém POD Comigo, da RFM, Ana Garcia Martins, mais conhecida como A Pipoca Mais Doce, clamou que “por cada bebé reborn que nasce, nasce um chalupa!” E ainda confessou ser avó reborn, já que a sua filha tem duas meninas, a Aurora e a Lili.
Na semana passada, no Portugalex, o noticiário fictício da Antena 1, Manuel Marques e António Machado trataram do assunto. Num fórum imaginário “entrevistaram” Marina Laranjeiro que assumiu ter comprado um desses “Nenucos” só para passar à frente das filas da Loja do Cidadão. “Levo-o ao colo e é uma limpeza.” O humor tende a aproximar-se da realidade, mas nesta caricatura ele foi tão realista quanto os bonecos em questão.
Padre não batiza reborn
No Brasil, multiplicam-se as histórias de disputa de custódia destes bonecos em caso de divórcio, de mulheres a exigirem tratamento prioritário em sítios públicos porque transportam um reborn ou a levá-los a hospitais para serem tratados.
A proporção que atingiram estes casos reais obrigou o governo a agir.
Segundo o site G1, do grupo Globo, a Câmara dos Deputados aprovou, a 15 de maio, três projetos de lei destinados à criação de políticas públicas relacionadas com a moda dos bebés reborn.

Entre as medidas que estão já implementadas, realça-se a restrição do atendimento médico a estes bonecos em instituições públicas e privadas, a definição de critérios para o acompanhamento psicológico de pessoas com vínculos afetivos fortes a estes “bebés” e a aplicação de multas a quem tentar usá-los para obter prioridade nas caixas de supermercado ou para ocupar lugares em transportes públicos.
Não admira que o padre Chrystian Shankar, conhecido no Brasil pela sua forte presença online, tenha sido obrigado, pelas circunstâncias, a fazer uma postagem irónica, avisando que não batizava estes bebés. “Não atendo ‘mães’ de boneca reborn que buscam por catequese. Nem estou celebrando missa de primeira comunhão para crianças reborn. Nem oração de libertação para bebé possuído por um espírito reborn. E, por fim, nem missa de sétimo dia para reborn que arriou a bateria. Essas situações devem ser encaminhadas ao psicólogo ou psiquiatra. E, em último caso, ao fabricante da boneca.”
Endorfinas, libertem-se
Esta é uma moda que vem de longe, ainda que agora tenha crescido muito por culpa das redes sociais, em especial do TikTok. Em 2020, já a questão era analisada por Emilie St. Hilaire, uma estudante de doutoramento em Humanidades, na Universidade Concordia, em Montreal, Canadá.
Na altura, a sua investigação dizia respeito aos aspetos “estranhos e misteriosos” dos bebés reborn, como a maternidade não reprodutiva, os modos de brincar dos adultos e os relacionamentos com substitutos não humanos. “Se tentarmos desvendar porque é que uma mulher sem filhos, especialmente uma que tem um bebé falso, é ameaçadora, então chegamos à perceção do papel da mulher: uma mulher bem-sucedida é uma mãe bem-sucedida”, referia ela ao The Guardian.
No Brasil, a Câmara dos Deputados aprovou três projetosde lei destinados à criação de políticas públicas relacionadas com a moda dos bebés reborn
Curiosamente, a investigadora, apesar de ter falado com dezenas de colecionadoras em todo o mundo, concluiu que nenhuma pensava nas suas bonecas como bebés reais, até porque cerca de metade delas já tinham filhos. Em vez disso, St. Hilaire observou que essas pessoas sentiam um gozo especial em levar os bonecos à rua e conseguir fazê-los passar por bebés, como se de um segredo se tratasse.
E, depois, há a real resposta biológica que se desencadeia ao manusear uma boneca de proporções e toque reais. Vários estudos sugerem que uma terapia com este tipo de bonecos pode reforçar sentimentos de apego e bem-estar emocional, especialmente em pacientes com demência. Alguns colecionadores apontam para os benefícios terapêuticos no controlo de problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão.
“Existe conforto em abraçar e segurar fisicamente algo que parece um bebé, mesmo que não seja um bebé”, nota Emilie St. Hilaire. “Isso pode mesmo libertar algumas endorfinas.”
Negócio em família
Cristina Jacinto, 63 anos, gosta desse conforto e seguramente liberta endorfinas sempre que pega num dos bebés de silicone ou vinil que a sua filha Soraia, de 35 anos, pinta. “Tenho esta filha, criei cinco crianças, vivo com três netos, por isso não tenho falta de bebés, mas adoro estes reborn.” Costuma dar-lhes banho (só aos de silicone, porque os de vinil têm corpo de tecido e enchimento), depois seca-os, põe-lhes pó de talco e veste-os com roupa lavada, que faz ou compra. “Eles têm uma enorme vantagem, que é não chorarem de noite nem chatearem”, brinca.
Algumas das suas peças de coleção estão em cima da cama, outras guardados numa vitrina no escritório. “De vez em quando, pego neles, dou-lhes beijinhos e levo-os ao colo até ao café, porque as minhas amigas estão sempre a pedir que o faça.” Na rua, as reações variam entre a curiosidade de quem quer tocar num bebé a fingir e estranheza. O realismo deste seu “vício” é tal que já levou algumas rabecadas quando não transporta os bebés da forma que seria adequada a um ser humano. “Sou mais maternal do que a Soraia. Sempre que ela termina mais um, ando uns dias a experimentá-lo”, conta, enquanto aconchega o número 1 no colo, com imenso carinho.
Foi por causa desta loucura que a mãe tem por bebés que nasceu a vocação de Soraia. Em 2015, depois de muito navegar na internet, desanimada com os preços elevados deste produto, Cristina acabou a encomendar um bebé por 300 euros num site duvidoso. Resultado: chegou-lhe a casa “um ratinho” que em nada se assemelhava ao que mostravam as fotos ou os vídeos. Uns Natais depois, a filha reuniu as poupanças e ofereceu-lhe o Little Germain – um exemplar loiro de olhos azuis – e Cristina até chorou. A encomenda foi feita a uma artista brasileira que enviou um bebé de vinil, muito realista.
No seguimento deste presente, Soraia pôs-se a pesquisar, a estudar, a contactar fornecedores, e meteu mãos à obra para ser ela a criar os seus próprios bebés reborn. Muitas experiências depois, tornou-se exímia nesta arte, em que a paciência não pode ficar de fora.

Os kits vêm de Espanha, desmontados, pernas para um lado, braços e cabeça para outro, no caso dos que são de vinil. Depois, ela tem de os compor, com recurso a tintas, cabelo e lã de vidro para calibrar os bebés para o peso desejado pelas clientes – todas mulheres, com diferentes propósitos. Cada exemplar demora, pelo menos, duas semanas a ser terminado e pode custar entre 300 e 900 euros, consoante os requisitos. Na caixa de entrega, segue também uma manta, um bonequinho, escova e pente, duas chupetas, fralda extra, fita e laço se for menina, certificado de nascimento e um guia de cuidados a ter.
Depois da encomenda, só é possível escolher o tamanho (os mais comuns têm 45 centímetros), a cor dos olhos, a cor da pele e o tipo de cabelo (implantado, fio a fio, com uma agulha), se as mãos estão abertas ou fechadas, ou se leva algum sinal específico. Com um pincel finíssimo, Soraia dedica-se também a desenhar as veias e as sobrancelhas. As pestanas são implantadas com os mesmos fios do cabelo.
Os de silicone – mais moles ao tacto, mas ligeiramente menos realistas visualmente – têm órgão sexual e umbigo. Os de vinil só se distinguem no género pela roupa e pelos lacinhos no cabelo.
Existem acessórios especiais, como um tubinho interior que permite que o bebé “beba” água e faça “chichi”. Ou uma máquina que se coloca dentro do corpo e que, através de um botão, aciona um movimento idêntico ao respirar e ao batimento cardíaco. “Nunca tive uma encomenda destas”, nota a artista. “Mas uma senhora que tinha perdido a filha pediu-me um kit que fosse o mais parecido com a menina. Tive de pôr muita lã de vidro no interior do boneco para chegar aos quatro quilos”, conta Soraia. Também há casos de adultos que não podem ter filhos, crianças com cancro, idosos com demência…
Brincar aos pais e às mães
A psicóloga clínica Cátia Silva reconhece algumas das vantagens de brincar aos pais e às mães com estes bonecos, atividade que vai seguindo essencialmente no TikTok – até hoje, não lhe apareceu nenhum caso patológico em consultório. “Em situações de luto, ansiedade ou burnout, podem funcionar como boas ferramentas de autoestima e autoconhecimento.”
Mas quando a coisa se extrema, como as histórias que chegam do Brasil, Cátia lembra que não é expectável um adulto brincar desta forma, que esses jogos simbólicos são destinados às crianças. “Então, poderá ser uma resposta a algo que emocionalmente não esteja resolvido, como um luto, uma dificuldade de vinculação, fruto de abandono ou rejeição, ou sintomatologia ansiosa.”
De vez em quando, pego neles, dou-lhes beijinhos e levo-os ao colo até ao café, porque as minhas amigas estão sempre a pedir que o faça
Cristina Jacinto, colecionadora
Nunca a ficção quis ficar atrás da realidade. Por exemplo, na série Servant, da Apple TV+, um casal adota um boneco que se chama Jericho e trata-o como um bebé humano. Sabe-se mais tarde que o casal está a passar por um doloroso processo causado pela morte do filho (também chamado Jericho). Naquele guião, o bebé reborn parece ser o único consolo da mãe que se encontra num estado catatónico provocado pelo luto – isso é caucionado pela sua psiquiatra e apoiado pelo marido e o cunhado.
Este passatempo – como gostam de lhes chamar as colecionadoras – assenta que nem um carapim na era das redes sociais, em que a busca de reforço e aceitação é uma constante e em que vale tudo em nome de mais um like ou seguidor. “Num determinado grupo, os comportamentos exagerados em relação a estes bebés são socialmente aceites”, lembra a psicóloga.
Sem julgamentos
Perante estes casos patológicos – “mães a fazer de conta que amamentam ou que querem vacinar os reborn” –, não devemos julgar nem ridicularizar. Antes, mostrar genuína curiosidade acerca do que aquele boneco representa emocionalmente.
É por essas e por outras que muitas clientes não querem dar a cara, duvidando das boas intenções das perguntas dos jornalistas. Pelo menos, é isso que refere Carolina Nicolodi, 30 anos, que se dedica, desde 2020, a pintar os bebés que lhe chegam em cru de uma fábrica alemã. No seu site, pode escolher-se o modelo e ela demorará mais ou menos dez dias a entregá-lo, a troco de um valor que pode oscilar entre 400 e 600 euros. Nos bebés mais requintados, o orçamento chega aos 2 000 euros.
Em Castelo Branco, Carolina só trabalha com kits europeus originais, que vêm com certificado da escultora, pois sabe que no Brasil, de onde é natural, existe muita falsificação no mercado.
Metade do público do atelier de Carolina são crianças, mas também tem algumas colecionadoras que apreciam esta arte. Simultaneamente, os seus bebés servem para fins terapêuticos, de mães enlutadas que buscam uma ajuda na superação da perda, idosos com demência ou que gostariam de ter netos, crianças com ansiedade e muito tempo de ecrã. “É que cuidar de um bebé reborn é sempre uma brincadeira calma.”
Onde nasceram estes bonecos?
Os reborn têm berço no pós-guerra, cresceram nos anos 1990 e tornaram-se adultos na contemporaneidade
Apesar de, atualmente, a loucura destes bonecos estar em alerta máximo no Brasil, a sua história começou no século passado, no pós-guerra, quando era difícil encontrar brinquedos. Nessa altura, algumas mães tornaram-se artesãs para conseguirem modificar as bonecas antigas, tornando-as mais realistas.
Só mais tarde, entre os anos 1980 e 1990, é que o conceito dos reborn se consolidou enquanto arte, nos Estados Unidos, e o resultado, quase perfeito, passou a interessar também os adultos.
Só nos anos 2000 os bebés reborn começaram a expandir–se pelo mundo, Portugal incluído. Mas transformou-se em fenómeno por culpa das “mães” brasileiras que adotam comportamentos demasiado realistas ao lidar com estes bebés a fingir. E, claro, os vídeos do TikTok e as postagens do Instagram foram o restante rastilho para incendiar as redes sociais com histórias mirabolantes, envolvendo estes bonecos hiper-realistas. É caso para perguntar: para quando o resto da família reborn, pai, mãe e animal de estimação?