Os sistemas de alerta funcionaram, os avisos foram emitidos a tempo e a ameaça estava há muito identificada e dada como provável, assim que se reunissem determinadas condições meteorológicas. Mesmo assim, foi insuficiente para impedir que, nos últimos dias, vários países da Europa Central e Oriental tenham sofrido inundações catastróficas, com prejuízos elevadíssimos, e que Portugal, após uns meses de verão que muitos consideraram “ameno”, voltasse a ser atingido por uma brutal onda de incêndios florestais, como já não se assistia desde o trágico ano de 2017. Em ambos os casos, foram acionados os mecanismos de solidariedade europeia para acorrer às emergências.
No entanto, os sinais de alarme não ecoaram apenas na Europa. Quase em simultâneo, vários países asiáticos foram atingidos também por grandes inundações, devido à passagem do supertufão Yagi, que causou centenas de mortes, nomeadamente no Vietname. Na América do Sul, por estes dias, também já foi batido o recorde do número de incêndios num ano, com as chamas a varrerem áreas imensas na floresta amazónica, no Pantanal e nas florestas da Bolívia, mas que também atingem o Paraguai, a Argentina e o Peru. Tudo isto está a acontecer, é preciso não esquecer, depois de anos sucessivos de incêndios florestais na Austrália, mas também na Califórnia – que é “apenas” o estado mais rico do país mais poderoso do mundo e que tem um dos corpos de bombeiros mais bem preparados e bem pagos do planeta. E também apenas um ano depois dos incêndios monstruosos que, durante semanas, lavraram no Canadá e que, para se ter uma ideia da sua intensidade, segundo um estudo da Global Forest Watch e da Universidade de Maryland, terão emitido para a atmosfera quatro vezes mais dióxido de carbono do que todo o setor da aviação civil durante os 12 meses do ano anterior.
Se todas estas catástrofes foram bem documentadas e exibidas ao mundo, outras do mesmo género continuam a ocorrer nos países pobres, sem a atenção mediática reservada às situações de emergência que fazem desfilar especialistas nos ecrãs de televisão das nações mais desenvolvidas. Depois de anos de seca e de temperaturas elevadas, grandes regiões da África Central e Ocidental estão atualmente a sofrer com inundações trágicas que, segundo a UNICEF, já provocaram mais de mil mortes, obrigaram à deslocação de mais de meio milhão de pessoas e destruíram mais de 300 mil casas. E a situação, segundo as principais organizações humanitárias, ainda deve piorar em muitos locais da Libéria, Nigéria, Mali, Níger e Chade, com a agricultura desses países quase devastada.
Quando a emergência nos bate à porta, como aconteceu agora, é compreensível – embora não avisado – que a nossa atenção se concentre apenas na tragédia próxima e se desfoque daquilo que acontece de semelhante um pouco por todo o mundo. E, nos primeiros momentos, também pode ser aceitável que, no caso dos incêndios, se repitam, como se fosse a primeira vez, as discussões acaloradas e quase sempre categóricas acerca do repartir de culpas entre a falta de ordenamento florestal, a prevalência de monoculturas, a ausência de limpeza dos terrenos e as sempre misteriosas teorias da conspiração sobre incendiários e os seus mandantes.
Mas mesmo que todas essas componentes possam fazer parte da discussão, elas têm de ser analisadas num contexto mais global, que é o decisivo. Até porque aquilo a que temos assistido nos últimos dias é exatamente o que, desde há décadas, muitos relatórios científicos nos avisaram que iria acontecer, assim que a temperatura média global subisse mais um pouco: os acontecimentos meteorológicos extremos passariam a ganhar maior intensidade e a tornarem-se mais frequentes. Fenómenos que, anteriormente, aconteciam uma vez numa geração, vão passar a repetir-se numa cadência superior.
Os fenómenos extremos a que temos assistido são resultado de um aquecimento global de apenas 1,4 graus, em relação ao período pré-industrial. E convém lembrar, no meio desta tragédia, que os piores cenários, se nada for feito até lá – e ainda há muito por fazer… –, indicam que o aumento será de 4 graus no final deste século, com consequências ainda mais devastadoras.
O pior das alterações climáticas ainda está para vir. E negar isso, em nome de um negacionismo que surge quase sempre misturado com o populismo político, é tão criminoso quanto lançar fogo a uma floresta. Não só porque não tem qualquer base científica, como impede que se tomem as medidas necessárias para travar as catástrofes cada vez mais inevitáveis. Cabe-nos a nós, por isso, nos momentos difíceis, saber escolher o caminho que pode, de facto, contribuir para a solução: o da Ciência ou o dos promotores do caos e da raiva.
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