Desde há um ano que, todos os meses, são batidos recordes de calor na Terra. O junho que há pouco terminou irá, provavelmente, tornar-se o 13.º mês consecutivo com as temperaturas médias mais altas jamais registadas no planeta. Embora, nos termómetros, as diferenças sejam medidas em valores que podem parecer irrisórios ‒ apenas algumas décimas de grau em vários casos ‒, os efeitos desta anomalia persistente são cada vez mais visíveis em diversos pontos do globo.
Todos os dias, vamos recebendo as notícias dos fenómenos extremos que agora se multiplicam, a uma cadência e intensidade a que não estávamos habituados. As ondas de calor chegaram, este ano, mais cedo a Itália e à Grécia, confirmando uma tendência recente. Em Deli, capital da Índia, as temperaturas estiveram acima dos 40 0C durante 37 dias consecutivos, algo que nunca tinha ocorrido. Na Arábia Saudita, a tradicional peregrinação a Meca, há poucas semanas, ficou marcada pela morte de centenas de pessoas, devido a uma onda de calor em que as temperaturas chegaram aos 51 0C. Em simultâneo, no extremo oposto, temos visto as imagens de inundações devastadoras no Brasil, mas também na Alemanha e nos EUA. A persistência de temperaturas altas nos oceanos tem já uma consequência, que poderá marcar o ciclo noticioso dos próximos dias: uma tempestade tropical formada no Atlântico evoluiu, em poucos dias, para um furacão de categoria máxima (grau 5), que ameaça agora as populações costeiras do continente americano. É a primeira vez que um ciclone gigante surge tão cedo, ainda antes do início da tradicional época de furações.
No entanto, apesar de todas estas evidências, dos prejuízos astronómicos que se vão acumulando após mais um fenómeno climático extremo, o mundo parece anestesiado com o evoluir de uma ameaça, há muito prevista pelos cientistas. Mesmo quando o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, num dos seus correntes alertas, lembra que “estamos a jogar à roleta russa com o planeta”, já não há qualquer sobressalto que impele à ação nem um acelerar de medidas que possam tentar reverter a situação. Antes pelo contrário: à medida que o mundo vai ardendo cada vez mais, crescem os apelos para se alargarem os prazos da transição energética, adiam-se decisões cruciais para a eliminação dos combustíveis fósseis e cresce até, em muitas populações, um descontentamento para com as políticas ambientais, que lhes ameaçam o modo e o sustento de vida.
O ambiente saiu de cena, perdeu protagonismo no espaço mediático e, acima de tudo, no debate político. O crescimento da extrema-direita, tantas vezes a utilizar o negacionismo climático como arma de arremesso contra as medidas drásticas que a transição energética exige, fez tremer a base eleitoral dos partidos tradicionais nas democracias ocidentais. E, perante o aumento do custo de vida, bem como dos sintomas de uma crescente desigualdade económica e social que vai cavando o fosso entre pobres e ricos, a preocupação é cada vez mais sobre o fim do mês do que sobre o fim do mundo.
O planeta está a arder e não é só porque se repetem as ondas de calor. Está a arder mesmo ‒ no sentido literal ‒ em guerras que ameaçam escalar para níveis que chegámos a pensar serem irrepetíveis. Está a arder com o desencanto de milhões de pessoas com as fragilidades e os erros cometidos pelos líderes das democracias ocidentais. Está a arder porque o populismo quer que tudo arda, a começar pelas instituições democráticas, e aproveita todo e qualquer momento para lançar ainda mais gasolina para a fogueira. E está a arder porque os algoritmos das redes sociais são ferramentas incendiárias e altamente lucrativas para as grandes empresas tecnológicas.
É neste mundo em chamas que vivemos hoje. Um mundo em que, de repente, na nação mais poderosa do mundo, a escolha do próximo Presidente é entre um mentiroso condenado e um octogenário com traços de senilidade. E um mundo em que, no dia seguinte ao debate entre os dois, os observadores são unânimes a sublinhar as gaffes e as faltas de memória de um, mas a desvalorizarem as mentiras e as afirmações perigosas do outro para a paz mundial. Como se a imagem fosse mais importante do que a verdade dos factos.
Num mundo a arder, repleto de urgências e de duelos decisivos para o futuro próximo, a emergência climática está a ser atirada para segundo plano. É um sinal óbvio dos tempos que vivemos, em que nos sentimos todos presos ao imediato e a um ciclo mediático cada vez mais curto. De uma coisa podemos, no entanto, ter a certeza: por mais imperativos e urgentes que sejam muitos dos problemas atuais, a grande maioria será resolvida com o tempo. Já o combate às alterações climáticas e ao aquecimento global pode ter um prazo que não deve ser ultrapassado. E, nessa altura, quando o mundo arder, iremos mesmo arder todos.
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