Nestes tempos de combate à pandemia vale a pena recordar um dos ensinamentos milenares do general chinês Sun Tzu, recolhidos na sua Arte da Guerra: “Aquele que conhece o inimigo e se conhece a si mesmo sairá vitorioso de cem batalhas; aquele que se conhece a si mesmo mas não ao inimigo por cada vitória conquistada conhecerá uma derrota; aquele que não se conhece a si mesmo nem ao inimigo será derrotado em todas as batalhas.”
Num combate em que as certezas sobre o “inimigo” ainda são escassas, apesar dos esforços da comunidade científica, o conhecimento sobre nós próprios é de vital importância. Os últimos meses foram elucidativos sobre a justeza da lição de Sun Tzu: os países que realizaram mais testes entre a população – quem se conheceu melhor a si próprio! – foram os que obtiveram taxas menores de mortalidade.
De uma forma ou de outra, o resto do mundo tem-se rendido às evidências e replicado aquilo que, no início fizeram os países asiáticos (sem dúvida, os mais atentos às lições de Sun Tzu…). Os confinamentos eram medidas desumanas e atentatórias da liberdade? Pois, mas fomos todos ordeiramente para casa, quando a curva começou a subir. As máscaras eram desnecessárias para a população? Pois, mas agora já é recomendado o seu uso se queremos voltar a sair à rua. O rastreamento digital das cadeias de contágio, através de aplicações instaladas nos telemóveis de cada pessoa, é um atentado à privacidade? Pois, mas agora já todos reconhecem que essa é a forma rápida e eficaz de identificar os focos, evitar a propagação do vírus e, desse modo, não sermos obrigados a parar outra vez o País, com medidas de confinamento.
Se virmos bem, todos nós estamos habituados a abdicar da nossa privacidade, com muito maior frequência do que pensamos. Fazemo-lo geralmente de forma despreocupada, quase de rotina. Sempre que nos aparece aquela indicação sobre os “termos e condições”, mesmo quando vem acompanhada de um aviso à privacidade, a maior parte simplesmente clica no quadradinho em que declara aceitar tudo, sem perder dois segundos a ler as páginas em letra pequenina que determinam o contrato que acabámos de assinar. Aceitamos por uma questão de comodidade, acreditando que os dados que, naquele momento, concordamos partilhar, são menos importantes do que o benefício que queremos tirar do serviço a que acabámos de aceder.
Desta vez, também o benefício global será, para já, muito superior ao prejuízo pessoal. De uma forma automática e muito mais rigorosa, será possível identificar todas as pessoas que estiveram em contacto com alguém infetado, nas últimas semanas, e tentar, assim, limitar o contágio a outros grupos e indivíduos – algo ainda mais importante agora, quando aumentam as dúvidas sobre a duração da imunidade nas pessoas que sobreviveram ao vírus. O trabalho que os serviços de saúde demoram dias a fazer e com falhas – a perguntar a cada pessoa se ainda se lembra de todas as outras com quem esteve – pode ser feito, através dos telemóveis, de forma automática e sem risco de esquecimentos.
Não há dúvidas: o rastreamento digital e total dos infetados seria a solução perfeita, mas num mundo ideal… onde, infelizmente, não vivemos. É mais do que certo que vamos ter de ceder alguma da nossa privacidade para podermos derrotar o vírus. Mas, em troca, não chega ter apenas algumas juras e declarações sobre o anonimato dos dados que vão ser partilhados e as garantias de que todos eles serão destruídos depois de a epidemia ser dominada. Já todos sabemos o suficiente sobre o comportamento dos Estados e das grandes corporações em relação à intrusão na vida privada. Por isso, desta vez, o contrato não pode ter letras pequeninas. Tem de ser claro e obrigar a maior transparência por parte do Estado e das grandes empresas tecnológicas. Só assim será confiável por todos e poderá alcançar o seu objetivo: vencer a pandemia