Se há escrita que reúna de forma complexa a imaginação e a realidade, ela é o romance biográfico. Não se trata da tantas vezes seca biografia histórica, repleta de dados e factos, subjugada a uma avalanche de supostas provas. Nem se trata de um romance totalmente livre da nente de quem o idealiza. É um compromisso que quer suscitar no leitor um entendimento da personalidade, uma visão global que o entenda.
Cristina Carvalho tem-nos habituado a esse exercício de nos dar textos que, mais que nos elencar dados de uma vida num correr de momentos, nos leva para dentro da vida, dos sentidos que dão miolo à carapaça visível dos factos. Cada capítulo de cada um dos já vários romances históricos de personalidades da cultura contemporânea com que nos brindou, é um ensaio sobre uma dimensão que torna essa pessoa, ao mesmo tempo, genial no seu universo de criação, e nosso igual na inevitável humanidade.
Neste seu volume, “António Gedeão. Príncipe Perfeito” (Relógio d’Água), Cristina Carvalho leva ainda mais longe a natureza ensaísta, interpretativa, do texto de sabor biográfico. Por um lado, a autora é filha de Rómulo de Carvalho, o nome de batismo daquele que ficou na poesia conhecido como António Gedeão e, por outro, todo o texto é um caminho no sentido de nos alertar para o facto desse homem genial ser hoje pouco reconhecido. Sim, Cristina Carvalho não é uma autora isenta, apresenta a sua “declaração de interesses”, e nem seria suposto sê-lo, não por ser filha de Rómulo, mas por fazer um texto de natureza crítica.
E é quase inquietante a forma como, a pouco e pouco, a escritora vai assumindo o seu lugar junto da figura apresentada. Não há um esconder. Mas há um recato, uma necessidade de ser rigoroso, apesar do rigor do que é tratado apenas lhe ser acessível porque era filha. À medida que os capítulos se sucedem, essa distância vai-se esbatendo.
Nos mais pequenos detalhes do quotidiano, Cristina Carvalho procura encontrar os traços do génio, aquilo que o suportava, com rigor e exigência, num constante ritmo de trabalho. Em certa medida, na linha do que já tem feito para outras personalidades das artes, a autora não resiste à tentação de fazer o seu quadro de interpretação do que permite ao génio a sua relação com o mundo que o rodeia.
Os momentos da vida de Rómulo de Carvalho, no correr do livro, vão-se sucedendo em direção à morte e às homenagens de que foi alvo aquando do seu 90º aniversário. Esse fim é o principal balanço do livro, num reencontro com uma obra que importa hoje recuperar. Aliás, na escrita de Cristina Carvalho há uma certa mágoa pela dificuldade que se encontra em colocar António Gedeão, mais que Rómulo de Carvalho, nos panteões das áreas em que foram mestres, a poesia, no caso do primeiro, e a investigação e divulgação científica, no segundo caso.
Quando terminamos a leitura deste volume, ficamos com uma sensação mista resultante da tensão entre dois opostos. Se nos é gratificante ficar a conhecer mais esse poeta que marcou gerações com a sua poesia, por outro, sobressai da escrita de Cristina uma constatação que nos obriga a pensar: a equação entre a obsessão pelo trabalho e o rigor geométrico da vida que, nessa regular organização de tudo, encontrava a serenidade que lhe permitia criar.
São escusos os caminhos da criatividade e da produção, como são ainda mais complexos os caminhos da construção da memória. Num tempo de micro-especialização, cruzada com a rapidez e superficialidade da criação de conteúdos, uma figura como Rómulo de Carvalho, surge, sem sombra de dúvida, como um Príncipe Renascentista, uma figura completa que nos avassala na qualidade e na quantidade, mostrando que, em muito da construção do saber, estamos a afastar-nos do essencial.
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