O romance histórico tem sido uma das ferramentas mais interessantes que os escritores africanos têm desenvolvido nos últimos anos. Recordo Abdulrazak Gurnah e Mohamed Mbougar Sarr e, mais próximo de nós, José Eduardo Agualusa com o seu recente livro “Mestre dos Batuques”. No caso lusófono, é clara a valorização que Mia Couto e Agualusa fazem da transição do século XIX para o XX, indo ao encontro das raízes do contemporâneo colonialismo onde, além da afirmação nacionalista portuguesa, tão típica dessa época, se encontra o final do tráfico negreiro, com um paradigma em momento de ser analisado e radiografado.
No seu romance “A Cegueira do Rio” (Ed. Caminho, out. 2024), Mia Couto adentra-se num dos campos mais importantes do choque que se deu em África na segunda metade do século XIX, quando as potencias europeias deixaram de comandar apenas pequenas zonas costeiras, para se embrenharem no interior do continente e se cruzarem mais brutalmente com as realidades políticas africanas centenares.
Por um lado, em mais um magistral romance, Mia Couto mostra ao inculto leitor que, antes dos domínios europeus, África já tinha reinos, líderes e estruturas culturais e organizacionais – todos os autores acima referidos, nesta veia atual da literatura africana, apresentam uma vocação pedagógica que procura demonstrar a existência de poderes organizados, anulando qualquer ideia de que a colonização foi um ato civilizador legítimo, dado o grau zero encontrado. Nesta linha, estamos perante um resgate da memória, até agora esquecida no Ocidente, mas também pouco valorizada nos próprios países africanos. Além da dimensão política perante Portugal, este texto é um tijolo na construção de uma identidade moçambicana tão destruída nas variadíssimas levas de guerras e de migrações desde o final do século XIX.
Mas, por outro, Mia Couto dá-nos um olhar extremamente arguto sobre o significado de uma das mais abissais diferenças civilizacionais em questão: a escrita; esta, é o centro de parte dos significados deste romance. Temos em pano de fundo o quadro da Grande Guerra, no início do século XX, as lutas entre portugueses e alemães, com os danos nas populações locais. Mas temos muito mais: o mais fascinante deste texto de Mia Couto é o lento processo em que nos vai introduzindo num mundo em que, misticamente, a escrita começa a desaparecer. Começando por uma aparente doença que ataca um militar português, expande-se, como um vírus, para todos os colonizadores. Toda a máquina burocrática que gere e controla os territórios e as gentes entra em falência, tudo se autodestrói.
Estamos muito longe de uma tradicional crítica ao colonialismo e às questões agora em cima da mesa da devolução de património e das compensações. Mia Couto coloca-nos perante a ironia de a abissal fratura entre uma civilização da escrita, com o que isso tem de controle, e uma outra do oral, com o que isso tem de ancestralidade e, em certa medida, de liberdade, terminar com uma situação em que ficam analfabetos os europeus cultos e poderosos, e dominam a escrita os africanos. São, no que Mia Couto imaginou, os africanos a ensinar as letras aos europeus, reescrevendo a História e recriando os significados do chamado processo civilizacional.
É um vislumbre com sabor a visão do precipício. Nesta metáfora, se oportunidade tivesse havido, que poderíamos ter sido ensinados por essas culturas africanas, antes de as termos destruído? Que “alfabetização” poderia ter ocorrido? Nem é a simples questão do que as potências europeias retiraram, mas do que poderiam ter trazido, numa troca salutar de saberes.
Essa é a mensagem de Mia Couto que, de forma forte e, talvez um pouco inesperada, remata o seu livro com uma situação em que, se o leitor não esteve atento até ao momento, então o escritor descodifica em poucas palavras para que nenhum distraído leitor não possa dizer que não entendeu.
Num quadro ritual, quase uma aparição, uma batuqueira ordena a Aluzi Msafiri, uma mulher difícil de catalogar, entre a feiticeira e, sobretudo, a herdeira de um importante lutador contra o domínio europeu, que vá ter com os portugueses:
“Queremos que vás ao palácio. E ensines esses brancos a escrever […] se estiverem cansados, que deixem por escrito uma única palavra. Essa palavra é «desculpa». Depois, os portugueses que peguem nas coisas deles e se metam num barco. Mais tarde, podem voltar a Moçambique. Na próxima vez, porém, eles que batam à porta e peçam licença. Estas terras não estão vazias. Estas terras têm donos e são muito antigos. Eles que deixem tudo isso por escrito. Será uma promessa que terão de cumprir. Se assim procederem nós, então, vamos recebê-los como sempre fizemos com quem nos visita.” (p. 313)
Talvez seja, para muitos leitores, um murro, o que Mia Couto nos dá com este parágrafo. Mas é uma síntese que nos deve fazer pensar no equacionar dos problemas que temos hoje em cima da nossa mesa quotidiana, sejam os mais teóricos sobre as devoluções de património e compensações, sejam os mais caseiros, referentes à falhada integração dos portugueses descendentes de africanos.
Muito temos ainda para serenar, mas também para aprender. O gesto de calçar as sandálias do outro é sempre um exercício a ter em conta, com tudo o que ele tem de potencialmente existencial. «Desculpa» pode ser um belo início de conversa civilizacional e cultural, partindo de um simples princípio: quem estava e quem chegou. E, hoje, as visitas já não se comportam como dantes. Devemos bater à porta, avisar que chegámos, para podermos ser acolhidos.
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