Entre as muitas formas de apreender o mundo, o jogo entre o detalhe e o global captam muitas das nossas capacidades e interesses. São aparentes olhares distintos que nos levam a ver realidades muito diferentes. O olhar para o mais lato faz-nos perder os detalhes, e o cuidado para com o mínimo, faz-nos perder a capacidade da big picture, da imagem que nos permite a visão do vol de l’oiseau.
Estamos hoje muito marcados pelo pequeno, com o olhar especialmente vocacionado para o detalhe. Seja a literatura, que tantos nos mostra as tramas que valorizam o indivíduo; seja a História que, com a chamada Micro-História, criou um lugar no olhar intelectualizado para a memória do cidadão comum nos seus dramas pessoais; seja, ainda, a Ciência, que se focou na grande especialização; hoje tudo nos empurra para o pequeno, para o reduzido que, com facilidade, se torna redutor; para o simples que resvala para o simplista. Altamente especializados em qualquer coisa, colecionadores de formações e pós-graduações em peculiaridades, perdemos, por exemplo, a capacidade da cidadania, a capacidade de olhar para o humano naquilo que ele tem fora das contingências que geram uma equação a ser resolvida por um modelo de produtividade e rentabilidade.
Por mais que o desejem, as Ciências resultantes de uma afirmação da técnica e da alta especialização não têm a capacidade de ir ao encontro do que é fundamental na humanidade: a capacidade de criar linguagem. E hoje esta equação torna-se brutalmente atual quando tanto se fala e escreve sobre os perigos da Inteligência Artificial. Um algoritmo cria leituras através de dominantes, de modas estatísticas encontradas no universo que ele analisa. Isso é a inteligência humana?
Numa recente visita ao Instituto Moreira Sales, em São Paulo, tive a oportunidade de visitar Fotografia Habitada, a exposição antológica de Helena Almeida, fotógrafa falecida em 2018, que na cidade brasileira tem a sua primeira grande exposição após a sua morte. Já me tinha cruzado com a sua obra no início deste século, quando estive próximo do projeto Triplov do grupo dinamizado pela Maria Estela Guedes. Mas, mais uma vez, o olhar esparso para obras tidas soltas e vistas de forma avulsa, não me tinha dado a possibilidade de compreensão que uma “retrospetiva” permite.
Fotografia Habitada, com a curadoria de Isabel Carlos, longe de nos focar num concreto redutor, remete-nos para as essências, para as formas de construir linguagem, mais propriamente, escrita. Com imagens fotográficas, a obra de Helena Almeida é uma forma de escrita do que nos é fundamental. Despojada, tatas vezes sem o rosto da própria artista que é sempre o seu próprio modelo, as imagens são mensagens em estado puro. Sem artificialismos, sem detalhes, sem nada que as retire do horizonte dos conceitos.
Fazendo-me pensar na imensa plasticidade do conceito de Non Lieux de Marc Augé, nos espaços desprovidos de identidade, olho para as obras de Helena Almeida e, longe delas serem despidas de detalhes que nos identifiquem espaços, tempos, elas são fundamentalmente capazes de acolher todas as identidades.
Da mesma forma que um ideograma, numa escrita pictográfica, é desprovido de todo e qualquer detalhe, para ser capaz de comunicar com todos, porque resumido ao que é essencial na ideia que quer transmitir, assim são as obras de Helena Almeida: um exercício de redução de uma ideia a um patamar mínimo que permite todas as especificidades dos objetos que ali revemos. Tal como uma criança desenha um Sol, ou um automóvel, simplificando-os a umas poucas linhas, metodologia de conceptualização que encontramos nas escritas mais antigas, também a fotografia de Helena Almeida é depurada para que o que é representado não seja apenas a visão de uma pessoa, mas possa acolher as visões de todos e, assim, comunicar.
Ver, recordar e regressar a esta artista que marcou o panorama nacional por cerca de 50 anos, é reaprender a olhar para as formas de fazer ideias. A arte tem essa capacidade de nos empurrar para o campo dos conceitos e do que já não tem nada de próprio, mas tudo de todos.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.