Mesmo com o caos instalado por causa da pandemia, Portugal não deixa de ser um país de polémicas empoladas e esticadas até à exaustão. Nada a fazer. Talvez seja cultural, ou talvez nos corra na massa do sangue, o certo é que uma polémica anima, faz levantar vozes, cada cabeça debita a sua sentença, e o tempo que se perde com isto faz falta para muitas outras coisas. Não há nada mais difícil do que aceitar uma crítica e fazer uso inteligente do tempo, sobretudo quando, por causa do confinamento, os dias parecem ter 72 horas e se torna um desafio fixar se é terça ou sexta-feira. Contudo, é importante falar de liberdade, importante, fundamental e oportuno, não por se festejar este fim de semana o Dia da Liberdade, mas pelo que a liberdade representa.
Nós, portugueses, ordeiros e cautelosos, habituados a acatar ordens do poder estabelecido, fomos mais rápidos do que o poder e estamos a dar cartas à Europa com o número de óbitos e a capacidade de inovação. Sim, estamos a provar à Europa que merecemos fazer parte do primeiro mundo, enquanto esperamos que a mesma Europa nos deite a mão. Parecemos aquelas crianças que se portam bem, têm boas notas e com isso sonham em entrar para o quadro de honra. Até na comemoração do Dia da Liberdade, tudo parece estar organizado na Assembleia da República, com corredores de entrada e saída e salvaguardadas as devidas distâncias. Não sou nem a favor nem contra as comemorações, prefiro pensar que o mais importante que é o direito à liberdade e lembrar que a liberdade nunca é um direito adquirido, mesmo quando acreditamos nisso.
A liberdade revela-se frágil quando em 2001 dois aviões destruíram as Twin Towers e um terceiro furou o Pentágono, quando o ISIS atormentou a Europa durante anos, quando os EUA elegeram um louco para a Presidência, quando a Covid-19 atravessou o globo como quem acende um fósforo e bateu à porta de todos.
A nossa liberdade nunca mais será igual: sempre que penso nas saudades que tenho em abraçar os meus pais, sinto medo de o fazer. E o mesmo acontece com a minha irmã que é asmática. Ou a minha sobrinha Teresa que está grávida. Eu não posso abraçar algumas das pessoas que mais amo por causa de um vírus que tanto é assintomático como mata. A Covid-19 veio roubar-nos o mimo e trouxe o fantasma da ceifeira para o primeiro plano da nossa vida, ou, para alguns, para o único plano, a única realidade. Longe dos hospitais e dos lares, caminho junto ao rio, guardando a distância recomendada, vou à praça de máscara e cada gesto é pensado para me proteger, mas sobretudo para proteger os outros. Talvez a liberdade também seja isso, proteger o próximo, porque a liberdade é um conceito amplo e vasto, que pensamos que é abstrato até ao momento em que nos mais pequenos gestos nos é condicionada ou retirada.
Somos uma população envelhecida e por isso existem mais pessoas que se lembram da Revolução de Abril do que outras, levada a cabo pelos Capitães de Abril e que a esquerda foi usando sempre ao longo de mais de 45 anos como seu porta-estandarte. Nada contra, mas é bom lembrar à esquerda, da mais caviar, à mais fiel aos ideais socialistas e comunistas, que o 25 de Abril de 1974 foi uma revolução democrática, e que precisou do 25 de Novembro de 1975 para que a Democracia e a Liberdade finalmente vencessem os extremismos a que estiveram expostas. Eu vivi o Verão Quente e assisti a perseguições da esquerda a vários democratas, portanto não me atirem poeira aos olhos, o 25 de Abril é a celebração da Democracia e da Liberdade e é isso que os portugueses festejam.
Quando penso em liberdade, penso sobretudo no sentido de liberdade e no amor à liberdade. O que faz uma pessoa ser livre não são os ideais democráticos, mas a sua prática. E essa prática, que é da responsabilidade de cada um, começa em casa, com a família, os filhos, os pais e os amigos. Um tirano doméstico até pode ser um chefe magnânimo, mas se não respeitar a liberdade dos mais próximos, de pouco lhe serve. O amor à liberdade é o que sentem as mulheres que não deixam que os maridos, namorados ou amantes lhes ponham a pata em cima. Que preferem estar sós a aturar uma presença opressiva. Que escolhem o caminho da solidão em nome da paz. Que não cedem ao medo em nome da eterna ambição de se sentirem protegidas.
No dia 25 de Abril irei caminhar junto ao rio sem cravos nem fanfarras, mas feliz por ter sido educada numa família em que a verdade, a liberdade, a igualdade de género e a democracia nunca foram apenas ideias, mas práticas comuns. Durante a minha caminhada, vou respirar fundo e ouvir as canções do Sérgio Godinho e do Zeca Afonso e irei ouvir o Ary a recitar As Portas que Abril abriu. Não conheço poema mais belo, mais sério, mais emocionante, mais português, mais puro e verdadeiro. Oiçam também e mostrem aos vossos filhos, está no Youtube, no Spotify, em todo o lado. Maravilhas das novas tecnologias.