A primeira primeira-ministra mulher e jovem da Finlândia visitou, pela primeira vez, a primeira primeira-ministra mulher e jovem da Nova Zelândia. Foi a primeira visita da primeira figura de um governo finlandês à ilha que conhecemos pela tradição do haka.
E estava tudo a correr tão bem, até que. Na conferência de imprensa, um jornalista perguntou às governantes se o encontro se devia ao facto de serem ambas jovens e, vendo que se enterrava à medida que colocava a questão, a tudo aquilo que as duas líderes “têm em comum”. Percebemos todos: se o encontro diplomático se devia ao facto de serem mulheres. A resposta das primeiras-ministras foi clara, arrumaram a tontice, mas o ridículo da questão dá pano para mangas.
O acesso das mulheres ao topo do poder é raro. É raro mesmo nos países onde as agendas integram a igualdade de género. Felizmente está a mudar, mas o caminho é longo. Por isso mesmo, a “novidade” de haver mulheres à frente dos governos é tratada como exceção: porque ainda é exceção. O facto de Sanna Marin ou Jacinda Adern serem mulheres é, no mundo ideal, um funny fact, mas estamos longe disso. Torna-se, portanto, natural que as campanhas eleitorais o frisem, que os media o explorem, que os eleitorados o sintam. Porque é novidade. Provavelmente, são as mulheres as primeiras a desejar que se torne banal. Adern, em resposta ao jornalista, interrogou-o sobre se alguém, alguma vez, imaginou que um encontro entre Barack Obama e o ex-primeiro-ministro neozelandês John Key resultasse de terem a mesma idade. Ou, acrescento eu, do facto de serem ambos homens. O que responderia?
Ver, no encontro entre altas instâncias de dois poderes soberanos, um chá entre duas amiguinhas é a prova de que a liderança feminina não é tida como normal. Por mais poder que detenham, as mulheres são constantemente infantilizadas – em especial, as que sorriem (como é o caso) e se atrevem a fazer política à sua maneira. Prevê-se que a entrada de novos protagonistas traga maior diversidade à política, a questão etária também pesa, mas o género é o pilar central. A opinião pública continua a esperar dos políticos uma atitude grave, sóbria, circunspeta, e atribui esse caráter aos homens. Mais: quando uma mulher age assim, é atacada por isso. Estamos a léguas de vencer a ideia de que o político por excelência é o sisudo strongman.
Como pode o tema da representatividade gerar tanta confusão? Na política, nos negócios, nos media, nas artes. Exemplo polémico: atribuir importância à eleição de Giorgia Meloni não implica defender que, sendo a primeira primeira-ministra mulher italiana, será melhor ou pior no cargo. É triste que a primeira mulher à frente do governo italiano seja uma extremista ultramontana – nos antípodas do feminismo -, mas reconhecer o facto da “novidade” é olhá-lo como símbolo de uma mudança necessária (e longe de estar concluída): ver representada a pluralidade da sociedade na política. Estamos longe.
Não acredito na eficácia de um discurso político centrado na afirmação da identidade individual – acho-o falível, contraproducente e frequentemente estéril -, mas estamos longe de um cenário em que o poder reflete a riqueza de uma sociedade diversa. É facto que as pessoas mais poderosas ainda são homens e brancos e heterossexuais. Constatá-lo não é atribuir um problema a quem o seja – todos conhecemos especimens de incalculável excelência -, mas perceber que há um problema básico e factual de justiça. A transposição para o quotidiano da noção teórica do homem-branco-hetero, no topo da pirâmide do privilégio, é inútil no discurso sem ponderação interseccional, isto é, sem considerar outras variáveis do contexto. A noção do “privilégio” custa a engolir num país onde milhões de homens-brancos-hetero levam vidas miseráveis. Misturar dimensões não-fungíveis como o género, a pertença étnica e a identidade sexual na formulação do boneco típico, o homem-branco-hetero, o esqueleto de plástico das aulas de ciências, dificilmente fará sentido no caso-a-caso. Já a nível sistémico, urge encarar a realidade: o acesso está longe de ser igual.
Sanna Marin e Jacinda Adern foram muito eficazes na resposta à questão do jornalista, demolindo a carga misógina com razão e brilhantismo. A líder finlandesa resumiu tudo numa frase: “yeah, nós estamos a reunir porque somos primeiras-ministras” (risos). A naturalidade das duas na resposta denota calo com situações do género, além de enorme competência, mas não deixa de ser um exemplo perfeito de como cilindrar uma tirada tonta e sexista. Num momento de crispação de todo o debate político, a capacidade de combater um problema estrutural com estratégia e inteligência é caso para nos inspirar a todos. Ainda bem que as duas jovens mulheres combinaram aquele seu pequeno encontro.
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