“Maria, a partir de hoje, falaremos na língua da terra que te vai receber”, disse o pai sorrindo com os olhos lacrimejantes. “Quando a nossa família veio para Viena, Maria, ela não era rica. Trabalhámos muito; fizemos tudo o que podíamos para contribuir e para nos sentirmos em casa. Temos orgulho naquilo que fizemos. E isso, ninguém nos pode tirar”
É com estas frases que termina o filme “A mulher de Ouro”, um filme magnífico que relata a história verídica da recuperação de um quadro retirado pelos austríacos nazis a uma família próspera de austríacos judeus durante o Holocausto. Sem querer retirar a beleza e riqueza das mensagens ali contidas, e o respeito pela história dramática de quem tanto sofreu no nazismo alemão, encontro neste testemunho, as palavras do meu avô que me impedia de conversar em gujarati com a minha avó porque o português era a língua do meu país e era essa a língua em que devíamos falar. “Somos portugueses”, dizia com firmeza e convicção.
A minha experiência de cidadania não é singular nem exclusiva. Qualquer muçulmano em Portugal é, antes de tudo, português. E cumpre os seus deveres enquanto tal. No entanto, a polémica sobre a mesquita que será construída na Mouraria tem suscitado as mais diversas reações, a maior parte causando-nos uma enorme tristeza e estranheza, porque os estranhos e temidos passámos a ser todos nós – os muçulmanos. Estes mesmos que chegaram sem nada e que fizeram tudo para contribuir e sentir-se em casa, tal como aquela família austríaca que teve o “azar” de ser Judia num período conturbado da história europeia!
Confesso que deixei de ir a uma festa fantástica preparada pela jornalista Inês Meneses porque na véspera ouvi, em programas da TV, gente que lá iria estar, falar dos muçulmanos como se de bichos se tratassem! Questionei-me em que mundo vivemos. Se estarei segura e se os amigos são realmente amigos, ou se me julgam pelo que um grupo minoritário e poderoso, financiado pelos próprios europeus, destrói a Europa que gente, como eu ou a minha família, ajudou a construir.
Nas redes sociais e meios de comunicação os argumentos assentam em dois tipos de discursos: uns mais islamofóbicos, xenófobos e racistas, outros de uma espécie de ditadura da laicidade. São discursos que se assemelham em tudo, aos discursos dos nazis sobre os judeus e cujas consequências são conhecidas pelos tristes e nefastos resultados que envergonham toda a Europa. Contudo, mesmo sendo esta uma história recente e vergonhosa para a humanidade, que ainda hoje tem consequências graves para a vida de povos e nações no médio-oriente, não parece, por aquilo que vou vendo escrito por aí, que se pretenda prevenir a possibilidade de novos conflitos, novas guerras, novos desentendimentos.
Urge perguntar: o que estamos a fazer errado? Será que existe em Portugal, realmente, um problema com os muçulmanos portugueses? Ou estaremos a ser indevidamente influenciados pelos media europeus para importar um problema que não existe em nossa casa? Será que nos conhecemos efetivamente?
É que em matéria de conciliação, de integração e paz multicultural, Portugal e os portugueses, não me canso de o dizer, são um case-study para o resto da Europa e do mundo. Temos apenas um problema que promove toda esta confusão: a educação.
Precisamos urgentemente de preparar uma educação holística, em que se permita o entendimento das letras, humanidades e artes, onde possamos contemplar o estudo do facto religioso que inspirou e moldou várias civilizações e permitiu que a ética e a estética, o Bem e o Belo, sejam estudados tal como hoje os conhecemos. O desconhecimento do facto religioso no nosso sistema educacional, encorajado pelo extremismo laico impede que conheçamos o suficiente para elaborar juízos informados. O resultado triste é a verificação de que todas as discussões que girem em redor das religiões são discussões completamente desinformadas que promovem as mais bizarras falsas deduções.
Para quem estudou nos anos 70, 80 e 90 em Portugal, ou para quem tenha os filhos a estudar em escolas católicas, como eu, essa desinformação é unilateral. Como muçulmanos, eu e os meus filhos tivemos uma educação católico-muçulmana; por contraste, os portugueses e católicos continuam a ler o Islão através de textos hegemónicos de um islão que é tudo menos isso! E mais grave ainda, através de imagens que não têm nada que ver com o muçulmano que é colega de turma ou da equipa de futebol!
Nenhum dos dois discursos se adequam à nossa “portugalidade”. O laicismo de esquerda que defende que retiremos a dimensão religiosa do imaginário colectivo português é o mesmo que reclama a retoma de todos os feriados nacionais, sendo que uma boa parte desses são religiosos e católicos, o que é em si mesmo, um contra-senso! A islamofobia, por outro lado, é um empréstimo que tem sido tomado a partir dos media internacional e adaptado a um contexto socialmente marcado pela presença dos muçulmanos. No alfabeto (etimologicamente resultante das 3 primeiras letras do árabe: alif, bê, tê), como na língua, na álgebra como nas artes e arquitetura, na culinária e na música, a Mouraria, ela mesma, são todas o somatório de um convívio salutar entre cristãos, judeus e muçulmanos, entre várias outras presenças culturais e religiosas que representam um Portugal plural e diverso.
A virtude de um Estado laico, que de resto, eu defendo, onde os valores republicanos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade são soberanos, é exatamente a não promiscuidade ou obrigatoriedade entre o laico e o religioso; por outras palavras, um Estado moderno, progressista e pluralista deveria ser aquele em que nem o religioso se sobrepusesse ao laico nem o inverso. Qualquer sobreposição e dominação exclusiva de um dois resulta invariavelmente em projetos sociais ditatoriais. Um estado religioso de tipo fundamentalista impede a possibilidade das mais elementares liberdades humanas. Um outro de ditadura da laicidade, onde a expressão religiosa fica obrigada à invisibilidade e clandestinidade só pode castrar e esvaziar todo o potencial da dinâmica entre o intelecto e a razão, tão essenciais para o avanço das ciências e do saber.
Não há nada de novo nisto. Basta olhar para a história do desenvolvimento das ideias para perceber como é salutar o equilíbrio entre ambos. E é precisamente este equilíbrio que precisamos recuperar sob pena de perder aquilo que ainda não tivemos a lucidez de entender: que não temos um problema nem com os religiosos em geral, nem com os portugueses que são muçulmanos.