Aconteceu o inimaginável, foram ultrapassados todos os limites, a completa desumanidade não pode ficar sem inequívoca condenação, o Estado de direito e a democracia têm de se defender e de atuar. Sabe-se, mas tenho de o recordar. No essencial, e sem qualquer dúvida: um homem de 43 anos, cabo-verdiano, pai de três filhos, foi morto por um polícia, a curtíssima distância, após ter sido mandado parar, em circunstâncias ainda não de todo esclarecidas, mas não por suspeita de ter cometido um crime grave.
Um homem, às 5h43 da madrugada, num bairro periférico de Lisboa, foi morto por um polícia, não em legítima defesa, não numa troca de tiros ou num motim, não numa operação contra alguma violenta organização criminosa de que fizesse parte, não numa perseguição em alta velocidade a um perigoso bandido em fuga, como as que se veem nos filmes… Apenas, na noite de um bairro modesto, àquela hora tranquilo, adormecido, embora, como testemunha um vídeo, quando alguns dos seus moradores já saíam para o trabalho – e um carro da polícia, dois polícias, um homem, africano, prostrado no solo, a morrer ou já morto, enquanto se abrem janelas e se ouvem vozes de vizinhos.
E, então, o que disseram, sobre este drama, dirigentes máximos de um partido que tem 50 deputados na Assembleia da República? Sabe-se, mas tenho de o recordar. O chefe absoluto, André Ventura: “Nós não devíamos constituir este homem arguido, nós devíamos agradecer o trabalho que este polícia fez. Nós devíamos condecorá-lo (…). Obrigado, obrigado. Era esta a palavra que devíamos estar a dar ao polícia que disparou sobre mais este bandido na Cova da Moura.” Pedro Pinto, líder parlamentar: “Menos um. Se calhar, se [os agentes] disparassem mais a matar, o País estava mais na ordem.” E Ricardo Reis, assessor: “Menos um criminoso… menos um eleitor do Bloco.”
O mau, e o pior Mesmo vindo de quem vem, custa a acreditar. E, embora para mim, como jurista, seja uma evidência estarmos perante os delitos denunciados numa petição que em poucos dias recolheu mais de 120 mil assinaturas, o pior é o que mostra sobre quem os cometeu. Ou seja: aquilo de que são capazes, o carácter, a completa falta de compaixão e o total desprezo pelos mais elementares direitos humanos, de quem “representa” no Parlamento centenas de milhares de portugueses. Que, apesar de tudo de terrível que se está a passar no mundo, tenho esperança de na sua imensa maioria não se reverem nisto.
Quem – e nas circunstâncias já conhecidas – matou, um herói; quem morreu, um bandido; e o que será preciso é matar mais, para o País ficar na “ordem”! Felizmente, Portugal vive em democracia e tem um povo em geral pacífico, cordial, solidário, apesar dos apologistas do ódio não há o perigo de nenhuma espécie de “guerra civil”. Porém, aquelas declarações só me lembram o que o sinistro general fascista espanhol Millán-Astray, em 1936, na Universidade de Salamanca, gritou ao grande Miguel de Unamuno: “Muera la inteligencia! Viva la muerte!” Viva a morte…
Defender a Polícia Em defesa da própria Polícia, os seus responsáveis máximos têm de ser os primeiros a exigir dos seus elementos o estrito cumprimento da legalidade e das boas normas do exercício da profissão. Vir imediatamente justificar/desculpabilizar comportamentos errados, negligentes ou até criminosos sem ter a certeza do que se alega (como neste caso ao dizer que o homem morto tinha uma arma branca, o que não se confirmou) é inadmissível. E só prejudica a própria corporação e o País. Que é o que o Chega faz, em grau superlativo.
Segurança e direitos humanos Entretanto, as manifestações de protesto em vários bairros de Lisboa e concelhos limítrofes tiveram, como em geral acontece, situações condenáveis, mormente o incendiar autocarros e automóveis, que não podem ser toleradas. E que também só servem os chegas que temos. Aliás, como sempre defendi, a “segurança” deve ser um valor importante defendido pelos democratas e pela esquerda. “Liberdade em segurança” foi aliás uma das principais palavras de ordem da primeira campanha presidencial do general Ramalho Eanes, a cuja comissão política pertenci. Segurança – em liberdade e com integral respeito pelos direitos humanos.
VENTURA, OS PROCESSOS, O IMPUDOR
O chefe do Chega faz constantes e copiosas declarações a que a generalidade dos média, sobretudo televisões, dá um espaço e um relevo injustificáveis, dado serem apenas peças da sua permanente campanha eleitoral. É um mau jornalismo, que serve, ainda que de forma involuntária, o Chega. O mesmo mau jornalismo de alguma “cobertura” da grande manif promovida pela Vida Justa e da pífia organizada pelo Chega.
Numa dessas declarações Ventura queixou-se de, pelas barbaridades que disse, quererem mover-lhe um processo, o que seria algo de condenável. Quando se pensa que isso já não é possível, ele consegue superar-se a si próprio – também, digamos, em impudor. Porque foi ele, com o seu partido, que quis pôr um processo ao próprio Presidente da República, não por chamar bandido a um inocente morto e propor que fosse condecorado quem o matou, mas por sugerir a possibilidade de, como outros países civilizados têm feito, se estudar uma “reparação” a antigas colónias.
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