A manifestação mais impressionante que se realizou em Portugal no século XXI aconteceu a 15 de setembro de 2012 e tinha como mote “Que se lixe a Troika!”. Mais de um milhão de pessoas saíram à rua, 10% da população portuguesa, e desde o 1º de Maio de 1974 que não se via uma coisa assim.
Não impressionou só o número de participantes, mas o motivo: o anunciado aumento da Taxa Social Única, iniciativa do governo de Pedro Passos Coelho, naquilo que parecia até um tema árido, dentro do emaranhado de contribuições para a Segurança Social. Na verdade, era só um gatilho, a gota que fez transbordar o copo de uma situação duríssima para os portugueses.
Impressionou também o tipo de pessoas que se cruzavam naquela manifestação. Não estavam ali apenas os “habituais” dos protestos de rua. Nas notícias que a reportaram, percebeu-se que muitos participavam numa manifestação pela primeira vez – e tal não se devia à idade, mas ao espectro político. Era o “centrão” que saía à rua e o extremo estava na cegueira das políticas do poder, incapaz de perceber que a corda não podia esticar mais.
Quando o primeiro-ministro, Luís Montenegro, diz a frase “os extremos saíram à rua”, referindo-se às manifestações de sábado passado em Lisboa, não só demonstra a cegueira (intencional ou não) do poder, como mete gasolina na fogueira da polarização, tentando tirar vantagem. Esta é a frase completa, dita num discurso em Ovar: “Num dia em que os extremos erguem cada um a sua bandeira em contraponto, em conflito aberto, nós somos o elemento de moderação.”
Uma leitura muito errada do 11 de janeiro, pois nada de extremo existia na manifestação “Não nos encostem à parede!”. Sem a dimensão do 15 de setembro de 2012, o 11 de janeiro de 2025 (com mais de 50 mil pessoas) teve na mesma rua uma mistura de vários espectros políticos. Porque o mote eram os direitos humanos, a vontade de combater o racismo, a indignação perante uma humilhação policial injustificada contra uma comunidade específica.
Em muitas partes do mundo, defender os direitos humanos até pode ser um ato radical, mas não devia sê-lo em democracia e muito menos no discurso político.
Na manifestação do Chega, com poucas centenas de pessoas, ouvimos André Ventura dizer que estavam ali em defesa de um “país em que haja mais direitos para as pessoas normais do que para os criminosos” e que a outra manifestação era “verdadeiramente pelos bandidos”. Este é o nível básico de associação dos imigrantes a criminosos, o grau mais simplório do discurso xenófobo e, sim… extremo.
Já a manifestação “Não nos encostem à parede!” estava cheia de imigrantes e de portugueses de bem. De bem com o próximo, de bem com o mais elementar respeito pelos direitos do ser humano, de bem com o facto incontornável de que, mesmo vendo a imigração apenas numa perspetiva económica e utilitária, ela é necessária ao País.
O problema do discurso dos extremos, a grande armadilha da polarização, é colocar a realidade na perspetiva do “nós” e do “eles”, uma forma incivilizada que só aprofunda abismos e cria ainda mais violência social. A polarização é uma força destrutiva. E Luís Montenegro caiu nesta armadilha. Pior: tentou usá-la para sua própria vantagem. Só que há monstros que, uma vez acicatados, são impossíveis de controlar.
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