Com uma pandemia e uma guerra na Europa pelo meio, parece que foi noutra vida, mas aconteceu há apenas dez anos, na manhã de 7 de janeiro de 2015. Armados com Kalashnikovs, dois homens, Chérif e Saïd Kouachi, com 32 e 34 anos, respetivamente, entraram a disparar pela redação do Charlie Hebdo adentro. Em menos de dois minutos, os irmãos Kouachi, com ligações à Al-Qaeda, mataram 12 pessoas, oito das quais eram cartoonistas do jornal. O ataque no semanário satírico francês, que não raras vezes criticava o Islão, traumatizou a cidade de Paris e chocou o Ocidente. Para França, seria o primeiro atentado terrorista de um ano tenebroso. Gerou-se uma onda solidária que, um pouco por todo o mundo, levou milhares a defender a liberdade e a proclamar: “Je suis Charlie.”
O atentado haverá de marcar para sempre a história do Charlie Hebdo, o qual não só foi capaz de preservar a sua independência como, desde então, se mantém de boa saúde financeira, um dado significativo na triste paisagem da imprensa europeia (a circulação aumentou cerca de 25% relativamente ao período anterior a 2015). Laurent Sourisseau, um cartoonista que assina Riss, foi um dos sobreviventes. Apesar da tragédia, conseguiram reconstruir a redação e continuar a trabalhar. Riss explicou, recentemente, à The Economist que estão sempre a pensar no atentado, embora não estejam sempre a falar nele. “Não podemos ficar esmagados por esta história”, argumentou.
Riss continua a viver sob proteção policial e, hoje, assume a direção do jornal que, para marcar os dez anos do atentado, acaba de lançar uma edição de 32 páginas. O riso e o humor não desapareceram: na capa, os cartoonistas desenharam um leitor bem-disposto, sentado em cima de uma arma, a ler o Charlie Hebdo. Sustenta Riss, no editorial do número especial, que inclui novos cartoons sobre religião: “A sátira tem uma virtude que nos ajudou a superar estes anos trágicos: o otimismo. Se alguém quer rir, é porque quer viver. O riso, a ironia e a caricatura são manifestações de otimismo. Não importa o que aconteça, seja trágico ou feliz, a vontade de rir nunca vai desaparecer.”
Fundado em 1970, o Charlie Hebdo sempre foi um jornal controverso e, nos tempos que correm, sobretudo nos EUA, há muito quem veja nos seus cartoons de temática religiosa, essencialmente, uma forma de humilhação dos muçulmanos. No mesmo artigo da The Economist, Riss considera, no entanto, que o Charlie Hebdo não é “extraordinariamente provocador”. O problema, diz, é que “a margem de tolerância” está a diminuir. Como sublinhava esta semana o Le Figaro, ao mesmo tempo que uma sondagem (realizada pelo Ifop para a Fondation Jean-Jaurès) dá conta da adesão da população à liberdade de expressão (76%), uma parte relevante das camadas mais jovens afasta-se das perspetivas satíricas do Charlie Hebdo. “Estamos a fazer exatamente a mesma coisa que fazíamos antes, mas à nossa volta as pessoas estão muito mais tímidas”, defende Riss.
Por haver sinais de que, dez anos depois, o apoio ao espírito do Charlie Hebdo é mais débil e de que, hoje, se vivem tempos de maior intolerância nas sociedades ocidentais, faz sentido perguntar: até quando estamos dispostos a proclamar “je suis Charlie”? Por coincidência ou talvez não, no outro lado do Atlântico, o ano de 2025 começou com a notícia da demissão da cartoonista do Washington Post, Ann Telnaes, após ter-lhe sido recusado um desenho que caricaturava quatro milionários de tecnologia e de média – incluindo Jeff Bezos, fundador da Amazon e proprietário do Washington Post – ajoelhados aos pés de Donald Trump. “Nunca tive um cartoon assassinado por causa de quem ou do quê que escolhi para apontar a minha caneta. Até agora”, afirmou Telnaes, já premiada com um Pulitzer. “Je suis Charlie Hebdo” para sempre?
OUTROS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ A revolta não pode ser uma arma
+ Gisèle Pelicot: nome de luta