Sangue: o País tem seguido, entre a curiosidade e o bocejo, a novela das gémeas brasileiras, tratadas, num hospital português do SNS, com um dos medicamentos mais dispendiosos do mundo. No cerne da artificial indignação que, à la carte, se instalou, havia dois pecados originais, em todo este processo: em primeiro lugar, a rápida concessão de dupla nacionalidade às pequenas. Em segundo lugar, a alegada cunha que as terá favorecido, primeiro, na marcação de consultas, segundo, na posologia aplicada pelos clínicos. No meio desta embrulhada, ninguém, jamais, se interrogou sobre duas questões fundamentais: crianças doentes, a precisar de tratamento urgente, que só por esta via poderia ser administrado, deviam ou não ser atendidas? Ou a questão de não serem de “puro sangue português” faz destas gémeas crianças de segunda categoria? Segunda: o facto de terem sido rapidamente atendidas, e tratadas, implicou, diretamente, que outras crianças tenham deixado de ser atendidas e tratadas? Dito de outro modo: alguma outra criança ficou sem o medicamento, pelo facto de este ter sido receitado a estas? Se sim, quem são, onde estão e como decorreram os respetivos processos? Esta guerra de alecrim e manjerona, alimentada, numa comissão parlamentar, pelo Chega, enervou muita gente e fez rasgar as vestes de inúmeras virgens ofendidas, a começar por ilustres deputados da Nação, que nunca, jamais, em tempo algum, meteram ou aceitaram uma cunha, essa instituição nacional que está – lá está… – na massa do sangue dos portugueses. André Ventura, é claro, atirou logo a primeira pedra. E o Presidente da República, estranhamente nervoso, enterrou-se completamente, naquela célebre conferência de imprensa, numa catacumba de Belém, na qual em muito contribuiu para agravar as suspeitas sobre o seu papel em tudo isto. Era tão mais simples assumir: “Sim, as gémeas foram tratadas em Portugal. Sim, o SNS fez os possíveis para salvar duas vidas, ou melhorar a respetiva qualidade a duas crianças doentes. Sim, o PR foi sensível ao caso humano. Sim, os contribuintes portugueses acabaram por financiar esta operação, que se impunha, por razões humanitárias.” Quanto ao resto – o favorecimento ilegítimo, a cunha, a agilização dos processos burocráticos –, cujo apuramento deve ser feito, é matéria para uma discussão completamente paralela, que pode e deve ser levada a cabo até ao esclarecimento total, mas que nunca, jamais, em tempo algum, deve merecer o foco principal.
Futebol: o País está suspenso do desempenho da Seleção Nacional, em terras alemãs, como se o seu desenvolvimento, o PIB, a resolução dos problemas da Habitação ou a época de incêndios dependessem disso. Os críticos apontam o exagero, os espíritos mais blasé ridicularizam a excitação, os indignados de serviço abominam tantas horas mediáticas dedicadas à bola. E, no entanto, um bom torneio da equipa das Quinas pode contribuir, como nenhum outro fator, para a autoestima nacional, para a confiança e o otimismo e, até, para o crescimento económico. Veja-se o que aconteceu em 2016, quando fomos campeões e tudo parecia possível. O futebol não é apenas um fenómeno de massas. É um fator de unidade nacional, a personificação, em forma humana, do Hino e da bandeira nacionais. E os políticos, claro, não resistem: lá esteve Luís Montenegro, a assistir à estreia contra a Chéquia. Poderia criticar-se-lhe o oportunismo, mas talvez seja preferível aprovar-lhe a leitura correta do (maioritário) sentimento nacional.