Se o que aí vem, depois da prisão domiciliária, é qualquer coisa igual ou pior do que a Grande Depressão dos anos 30, com uma redução brutal da produção, disparar do desemprego e da pobreza, convinha recordar como essa tragédia levou, por esta ordem, o pão, a liberdade e a paz só para evitar males maiores do que aqueles que já não dependem de nós.
Na década de 30, o resultado do “Estado tudo” foi para a maioria das jovens democracias da Europa Ocidental o fim da liberdade e do pluralismo que estavam a experimentar. Os líderes autoritários que levariam a Europa à destruição foram forjados na crise e na miséria dos anos 30. Sempre à boleia da intervenção do Estado na economia perante a excecionalidade e a emergência…
Mussolini, Hitler, tantos, até o nosso dr. Salazar, emergiram das rédeas do Estado e das repetidas quimeras de autossuficiência como resposta à crise iniciada em outubro de 1929. A propor, aliás, políticas e práticas económicas estranhamente parecidas com as que hoje já vai desejando a nossa estimada oposição à esquerda… Noventa anos depois, ainda assim o mundo é outro. Espero eu. Vamos ver.
A primeira diferença é seguramente a causa da crise. Ainda hoje se discutem as causas da Grande Depressão, há teorias para todos os gostos como, de resto, sobre a gula de que escorreu a crise financeira de 2008.
Desta vez não há discussão: a causa é um vírus que eclodiu a partir da China e parou a economia do mundo. Se a óbvia incompetência da OMS contribuiu muito ou pouco para o resultado, está por saber. Mas conta pouco para esta discussão. Ninguém teve remédio a não ser fechar-se em casa e a praga parou a economia mundial.
Agora “só” falta saber o que fazer para não ficar outra vez sem liberdade e paz quando escasseia o pão. Gostava de escrever que a outra grande diferença é que sabemos mais, que o século XX nos ensinou, e porventura melhor do que nunca com as consequências da Grande Depressão, que precisamos de um Estado forte para garantir a ordem pública, a justiça e a igualdade de oportunidades.
E que tudo o mais, se queremos democracia, se constrói a partir daí com a liberdade de cada um.
Mas depois olho à volta, abro redes sociais, leio o ar dos tempos e o que me intriga cada vez mais nem é o resultado, é a fonte desta repetição, desta vozearia cada vez mais afunilada das sentenças que, confesso, já me pareceram mais divertidas.
Somos, como tanto se vê agora, cada vez mais a ponta de um algoritmo e isso ameaça já a liberdade a patamares que não sei sequer se consigo imaginar.
É por isso que, voltando à China, me perturba muito – e mais agora que dependemos cada vez mais de tecnologia para construir uma sociedade resistente à pandemia – a repetida tentativa de controlo da internet materializada numa recente apresentação na UIT – o organismo das Nações Unidas que tutela as comunicações – de uma proposta de novo IP (protocolo internacional) para a internet e de uma nova estrutura tecnológica de suporte que se dizem dispostos a construir.
Uma estrutura para controlo da internet pelo Estado em que a censura faz parte do quotidiano, em vez da total liberdade na qual hoje nem nos ocorre pensar. Promovida por um país onde é preciso licença para ter um site e já ninguém escapa à fantasia Orwelliana, como se viu com o vírus. Tudo o que a China precisava para emergir como o Império de uma nova ordem mundial era mesmo o suporte tecnológico para expandir à escala global o seu totalitarismo quase sem sair de casa. E isto é tão evidente que acredito terá como resposta um mundo com duas redes, no fundo como já faz hoje a censura de Pequim: a da liberdade e a dos chineses.
A guerra pelo controlo da internet é uma guerra pelo controlo da liberdade. Que catástrofe e que ironia se depois de sobrevivermos ao século XX, as pandemias, em cima da pobreza que se anuncia, nos dessem uma ordem mundial comandada pela ditadura do Partido Comunista Chinês.