A manhã esconde-se atrás da Lua e os homens vão fazendo ajuntamento, caras estremunhadas, mãos enregeladas. Vão chegando apressados ao adro da igreja, enchendo-o de murmúrios. São os romeiros pascais que se saúdam, uns de aperto de mão, outros em abraços efusivos. É hora da primeira caminhada. Espera-os a ilha, semente de feijão caída no mar. Os bordões de apoio para a caminhada aglomeram-se no chão ao lado uns dos outros, formando um pequeno soalho de madeira sobre a pedra lavrada. E há terços e sacolas de comida nas mãos, xailes sobre os ombros e lenços ao pescoço, que ainda cheiram a detergente ou bolas de naftalina, conforme os cuidados, mas que, dali a pouco, serão cheiro de erva e de terra molhada, de ramagem de criptoméria, de mato apenas.
É Páscoa, de 26 de fevereiro a 9 de abril, e todos os católicos já se reveem na invocação da intercessão de Maria Santíssima, que o Papa Francisco propalou nesta quaresma religiosa: “Para que acolhamos o apelo a deixarmo-nos reconciliar com Deus, fixemos o olhar do coração no Mistério pascal e nos convertamos a um diálogo aberto e sincero com Deus. Assim, poderemos tornar-nos naquilo que Cristo diz dos seus discípulos: sal da terra e luz do mundo.”
A ilha de São Miguel, com os seus 749 quilómetros quadrados, a maior do arquipélago dos Açores e de todas as ilhas que integram o território nacional, nesta altura do ano, espera os romeiros como uma certeza e as ermidas e igrejas marianas dos concelhos de Ponta Delgada, Lagoa, Ribeira Grande, Vila Franca do Campo, Povoação e Nordeste, são engalanadas a preceito, emanando o perfume de rosas e de azáleas, colhidas do chão vulcânico, para os receber na sua caminhada.
As primeiras romarias saem no fim de semana a seguir à Quarta-Feira de Cinzas e os últimos ranchos entram nas freguesias na Quinta-Feira Santa, início do Tríduo Pascal.
As mulheres do interior profundo da ilha, orgulhosas dos seus caminhoneiros, emocionadas também pela separação dos maridos durante a extensa semana de romaria, e pelo ato em si, despedem-se com um “Cadês, mê rico hóme. Agardece a Dês e a nossa Sinhôra!” E lá vão eles. Ao todo formam 55 ranchos, envolvendo cerca de 2500 homens provindos de todas as freguesias da ilha. Palmilham quilómetros com o sol ardente ou com o frio, debaixo de chuva ou com o vento, enquanto entoam cânticos e rezas.
Cumprem uma tradição religiosa secular, um ritual que remonta a 1522, quando as forças da natureza se manifestaram em terramotos e vulcões, destruindo a então capital da ilha, Vila Franca do Campo.
Cada rancho é constituído pelo Mestre e Contramestre, que são nomeados pelo pároco local, e que são os responsáveis pelo grupo; há também o Procurador das Almas e o Lembrador das Almas, dois guias e dois ou mais ajudantes. Todos se tratam por irmãos.
Fora as rezas e cânticos que entoa, o romeiro observa o silêncio, enquanto ocorre a romaria, como forma de melhor interiorizar o ato piedoso. Cada grupo de romeiros caminha durante uma semana, mergulhado na natureza exuberante da ilha, sob céus azuis ou negros, acompanhado pelo Atlântico, quase sempre revolto nesta altura do ano.
As pernoitas acontecem em casa dos fiéis das freguesias que, à maneira que decorre o penoso périplo, oferecem higiene, camas e comida, atenuando o cansaço e a fome dos caminhantes.
Se, por altura da Quaresma, vier a São Miguel, poderá encontrar, nos muitos caminhos da ilha, uma procissão de romeiros, no enquadramento da paisagem, avançando determinadamente para um lugar em frente. Um ritual que testemunha a entrega dos ilhéus à oração, resultado do seu confronto com forças destruidoras, longe dos centros de poder e de auxílio, entregues a si próprios, munidos de muito pouca coisa para além da sua coragem e da sua fé.
Fruto do isolamento e dos desafios que enfrentaram, os romeiros quaresmais micaelenses ultrapassam as suas próprias pegadas, mais espirituais do que físicas, calcorreando as veredas sinuosas da ilha. Não é raro encontrá-los. Acontece, com assombro, nesta aparição, sem que possamos fugir-lhe, comungarmos com os humildes romeiros a brutal estranheza da condição humana, a visão esmagadora da nossa fragilidade. Pode ainda acontecer que, nesta experiência onde encaramos a nossa pequenez, percebermos a nossa coragem e ainda revelar-se a nossa força, mas isto já é com cada um.
Há quinhentos anos que assim é. Há cinco séculos que ecoam cânticos e rezas, dedilhados em contas de terços, numa entrega incondicional cíclica à espiritualidade e ao bem comum.
Bem hajam!