Os meus pais são de Zhenjiang, na costa este da China. Ambos emigraram para Madrid, onde se conheceram e casaram. Logo após o meu nascimento, deixaram-me com os meus avós paternos, na China, onde fiquei durante quase cinco anos. Isso é muito comum nas famílias chinesas, porque estão focadas 100% no trabalho e sabem que não vão ter tempo para tomar conta das crianças.
Mais tarde, vieram para Portugal em busca de uma oportunidade. Abriram o primeiro restaurante chinês de Vila Nova de Famalicão. Quando alcançaram maior estabilidade no negócio, vim viver com eles, em 1997. Custou-me muito despedir-me dos meus avós. No início não foi fácil, porque não conhecia os meus pais – não havia as videochamadas como há agora. Chorei um bocado, mas não fiquei traumatizado. Consegui adaptar-me, e essa capacidade de adaptação é algo que me tem acompanhado sempre.
Morávamos num apartamento T2 com os funcionários – igualmente chineses, algo que também era típico, pelo conhecimento da gastronomia e pelas dificuldades em comunicar com os portugueses. No meu quarto vivia com os meus pais, no quarto ao lado estavam mais duas pessoas e na sala mais duas ou três. Não era difícil, sinceramente, porque nunca estivemos habituados a mais do que aquilo.
Desde muito cedo, tive de aprender a tomar conta de mim, porque os horários do restaurante não permitiam que os meus pais me acompanhassem. A minha infância foi sempre neste modo de criança adulta, andava pela cidade sozinho e tinha a máxima liberdade em tudo.
A integração foi boa, porque era pequenito, era engraçado, era dos poucos chineses que as pessoas viam por aqui e gostavam de interagir comigo. Senti-me sempre muito bem acolhido em Famalicão, tive muita sorte em ter vindo cá parar. Os meus melhores amigos são todos portugueses, conhecemo-nos na escola secundária e identificámo-nos uns com os outros, todos começámos a trabalhar muito cedo. Esta veia empreendedora vem da malta que nunca teve as coisas facilitadas. E o pessoal do Norte sempre teve de trabalhar mais. Quando temos poucos recursos e temos de dar à perna para sobreviver, somos sempre mais bem-sucedidos. O meu desconforto obrigou-me a ir um passo mais rápido. E o meu passo, neste momento, tem uma cadência acelerada.
Como os meus pais falavam um português básico, precisavam de mim para tudo. Nas famílias imigrantes chinesas, normalmente é o filho mais velho que tem a responsabilidade de ajudar. Podia ter-me feito de vítima e sentir que estava a ser demasiado pressionado. Mas admirava o meu pai, queria ser como ele e tinha gosto em fazer aquelas tarefas. Quando tinha 13 anos, apoiei-o na abertura de uma loja, em Esposende. Nas relações que criei com os bancários, os contabilistas, o advogado, todos diziam: “Quando fores grande, vais ser um grande empresário.” O bichinho para os negócios cresceu aí. Ganhei uns cabelos brancos, mas a loja foi um sucesso.
Hoje agradeço aos meus pais ter passado por isso, porque desde muito cedo tive a noção da importância do dinheiro, da liberdade que nos dá fazermos do nosso tempo aquilo que queremos. A minha esposa está grávida da nossa primeira filha, que vai nascer em julho, e vou tentar sensibilizá-la também para essa questão. Vai crescer com um conforto que não tive, e não quero que pense que é tudo dado.
“Viemos do nada”
Não procurei uma mulher chinesa, aconteceu – ela também cresceu em Portugal. Na verdade, é mais fácil, porque ela entende a nossa forma de olhar para a vida e para o trabalho. Noutras relações que tive, havia mais divergências. Os meus pais ficaram contentes com a escolha, até porque tinham aquela preocupação com o legado, algo muito importante na cultura chinesa.
Vivemos e trabalhamos todos juntos, com os meus dois irmãos mais novos, e temos uma boa relação. Há uns anos, construímos a casa com que sempre sonhámos e é bom podermos usufruí-la e termos estes momentos em família. Sabemos que é por um tempo finito, um dia cada um vai ter o seu espaço.
Com o passar do tempo, comecei a reparar mais na atitude dos meus pais e percebi que tinham sacrificado o presente para poderem ter um futuro melhor. Tiveram de trabalhar 16, 18 horas por dia, sete dias por semana, inclusive feriados, domingos, aniversários. Na mentalidade mais ocidental, o trabalho não é tudo. Para os chineses, muitas vezes, está em primeiro lugar. Nós viemos do nada. Se alcançámos o que alcançámos foi porque trabalhámos muito.
Por volta dos 17 anos, tive a oportunidade de ficar à frente do restaurante dos meus pais, que, com a dispersão dos negócios, estava falido. Tive a ideia de criar um conceito mais autêntico. Não é que a comida que servíamos não fosse autêntica, mas a experiência que tinha como chinês a comer comida chinesa não era a mesma dos clientes – desde logo, porque comiam com faca e garfo e nós comíamos com pauzinhos. O nome Mikado vem daí, de introduzir a utilização dos pauzinhos e o conceito de partilha, porque na China os pratos são todos para partilhar. Resolvi também introduzir o sushi, sem perceber nada de gastronomia japonesa, para ver qual era a aceitação. E correu muito bem. Com o tempo, fui adaptando, melhorando.
Em 2016, abrimos uma casa nova, com uma arquitetura mais sofisticada, porque sentimos que estava na hora de dar o salto. Aí já estava com 22 anos, a acabar, ao mesmo tempo, o curso de Gestão Hoteleira, sem grande noção do desafio gigante que ia ser. No início não correu bem, porque não sabia liderar, era quase um escravo do meu próprio negócio.
As conquistas aconteceram quando comecei a perceber que não queria ser um patrão fixe, queria ser um patrão que gera valor, paga bons salários e consegue criar uma expectativa de crescimento para todos os colaboradores. Temos pessoas que foram nossas funcionárias e hoje partilham negócios connosco.
Dá-me prazer fazer as coisas e sentir que estão a correr bem. Agora só quero desfrutar do processo. Quero chegar longe com uma boa estrutura familiar, bons amigos, boas relações, sem passar por cima de ninguém.
Depoimento recolhido por Joana Loureiro