‘Na Igreja, há espaço para todos.” Quando ouvi a frase do Papa Francisco, a que mais me marcou nesta Jornada Mundial da Juventude (JMJ), projetei, do âmago da minha alma, um forte “todos, todos, todos!”, respondendo ao seu apelo. Talvez porque, horas antes de a ouvir, tenha sentido na pele o ódio, quando um grupo de cristãos radicais invadiu uma missa que acolhia pessoas LGBT, aberta a “todos”. Foi violento tê-lo vivido dentro de um espaço tão seguro e especial para mim – a minha própria paróquia. Pela primeira vez, ouvi a oração ser usada como uma arma de ódio e senti confusão e medo. Não é surpresa que muitos se perguntem se é, afinal, possível ser LGBT e cristão.
Sempre quis – como acho que todos queremos – amar e ser livre. Mas foi nesse desejo de liberdade para amar que senti duas tensões: amar a Deus incomoda setores que desejariam uma sociedade mais secularizada e com uma liberdade religiosa condicionada e determinada por uma visão ateísta do indivíduo e do Estado; e amar alguém do mesmo sexo incomoda outros setores que entendem o amor como um exclusivo da heterossexualidade. Como gay e católico, ambas as tensões me acompanharam desde cedo. Estou seguro de que muitas outras pessoas LGBT, em todas as religiões, enfrentam lutas e desafios semelhantes. Em certos ambientes, sentia que era melhor disfarçar ou omitir que amo a Deus e à Igreja; e, noutros, que era melhor disfarçar ou omitir que amo alguém do mesmo sexo. Mas, depois, percebi que sempre que estamos a esconder, a fingir ou a omitir algo legítimo, estamos também a privar-nos da liberdade.
Cheguei até a namorar com uma mulher, uma pessoa de quem gostava muito, muito bonita… Tentei convencer-me de que era heterossexual, mas, na verdade, a sexualidade não é uma opção, e rapidamente percebi que não podia trazer outra pessoa que me amava para a minha guerra interior.
Todas as histórias de aceitação são distintas. Na minha, a pessoa que menos me aceitava e mais privou a minha liberdade – e da forma mais severa – fui eu próprio. Não queria ser gay, porque isso era um insulto, era ser alvo de bullying e trazer chacota para mim e para a minha família. Aceitar-me parecia ser tornar-me alguém diferente e solitário em todas as esferas da minha vida, e isso era imprevisível, assustador ou até escandaloso: na família, na escola, no trabalho, no clube de desporto, na igreja. Antes de me aceitar, a fé foi um espaço que tanto acolhia as minhas petições incessantes para não ser gay como me trazia o conforto espiritual e emocional necessário para uma pessoa em guerra consigo mesma. Uma pessoa transtornada com a impossibilidade de se amar como é e castigada por uma cruz que não tem ressurreição.
O testemunho dos tradicionalistas radicais recorda-me que eu também já fui duro comigo e com todos os outros que não viviam da forma irrepreensível que impunha a mim próprio. Mesmo tendo diretores espirituais e padres em confissão que apelavam a um caminho de aceitação e de amor-próprio, mesmo que fosse com outro homem. Fui eu que procurei discursos mais extremados de uma (as)sexualidade que não comportava. Percebi, aos poucos, que é na pluralidade e no diálogo entre pessoas que pensam diferente que podemos diluir ideias radicalizadas. Reconheço o apelo do Papa, nesta JMJ, de não termos medo. A Igreja não deve ter medo de falar de sexualidade e de afetos naturais ao ser humano, de um modo realista e não utópico nem puritano. Os jovens precisam de uma Igreja que cria espaços para desconstruir preconceitos e que aceita a diversidade de pessoas, de géneros e de manifestações da sexualidade inscritas no corpo humano.
“Ainda sinto medo”
Em Portugal, acho que existe um défice substancial de educação sexual, que empurra muitos jovens a lidar com os impulsos da sexualidade nos lugares menos seguros. Apesar de tudo, eu fui um privilegiado. Infelizmente, há histórias de muitas outras pessoas cristãs e LGBT que enfrentaram a severidade dos seus pais, dos párocos, dos professores, dos melhores amigos, dos religiosos em escolas religiosas e até de bispos que rejeitam o trabalho pastoral junto de pessoas LGBT ou as excluem de funções por causa da sua identidade. Espero que os incidentes recentes e a visibilidade que tiveram nos levem a perceber que negar e esconder é excluir.
Olhando para o futuro, vejo motivos de esperança. O incidente da invasão da missa na minha paróquia recebeu de todos os lados mensagens de preocupação e também de solidariedade e apoio. Hoje, sei que é possível ser-se LGBT e cristão em simultâneo, e o amor a Deus não precisa de ficar de fora da Igreja para quem não é heterossexual.
Mas ainda sinto medo. De desiludir, de trazer vergonha. É por isso que a existência de grupos cristãos LGBT, como o Centro Arco-Íris em Portugal e o CRISMHOM em Espanha, e as missas que acolhem estas pessoas me deixam mais tranquilo, mais acolhido e com um sentimento de que não sou o único.
Se votarmos pessoas LGBT à invisibilidade para não discriminar positivamente, para “não criar rótulos” ou, pior, porque são vistas como pecadoras (como se não o fôssemos todos!), criamos uma monocultura de “heterossexuais”, que não corresponde à realidade, e uma visão reducionista dos caminhos válidos, necessários, saudáveis e mentalmente recomendados a seguir por todos os católicos. Mais ainda: impactamos negativamente o potencial individual e a saúde mental destas pessoas, tornamos a sua presença na igreja insuportável e perturbadora do seu equilíbrio mental e condicionamos a liberdade de amar.
As palavras do Papa Francisco são uma mensagem muito especial para quem é cristão e LGBT: acredito que Deus nos ama tal como somos, não como gostaríamos de ser ou como a sociedade gostaria que fôssemos. Alguns, na sociedade ou na Igreja de Cristo, são LGBT, e está tudo bem: Deus ama-nos assim também.
Depoimento recolhido por João Amaral Santos