A música de Carlos Paredes (CP) possui, como a de Chopin com o piano, uma ligação umbilical com o instrumento que elegeu: a guitarra portuguesa. Porém, e ao contrário do compositor polaco, com quem, aliás, CP partilha o génio melódico e o interesse pelo canto, a sua música, não obstante essa ligação umbilical, funciona muito bem noutros instrumentos, tendo sido, aliás, arranjada e tocada com alguma frequência por excelentes músicos “clássicos”, como Joana Bagulho no cravo (um “parente” próximo da guitarra, no sentido em que as cordas de aço são beliscadas por uma pena, tal como as cordas da guitarra são beliscadas pela unha, natural ou artificial, do executante) ou André Gaio Pereira, em violino solo, instrumento que faz também todo o sentido, uma vez que CP o estudou inicialmente, junto com o piano.
É precisamente essa herança de uma educação musical clássica, misturada com a também enorme herança familiar, nomeadamente a do pai, Artur Paredes, outro génio da guitarra na tradição de Coimbra, que dará à música de CP uma originalidade e solidez que outros músicos fora da tradição erudita nem sempre atingem.
A sua música possui, como a de Chopin (com quem partilha o génio melódico e o interesse pelo canto) com o piano, uma ligação umbilical com o instrumento que elegeu: a guitarra portuguesa
Mesmo não tendo escrito em partitura nenhuma das suas peças, e talvez nem o sabendo tecnicamente fazer, CP, como, aliás, José Afonso – outro génio popular cuja cultura musical erudita, em termos auditivos, era enorme – absorveu entusiasticamente todo esse repertório clássico, em particular – podemos adivinhá-lo pela sua música – o repertório clássico, romântico e nacionalista do século XIX. Paganini, Rimski-Korsakov, mas também Chopin, Mozart e Beethoven, bem como a música medieval e renascentista estão bem presentes na sua música, para não mencionar o óbvio: a herança da guitarra de Coimbra, da canção coimbrã, cuja influência nas primeiras peças é evidente, o Fado de Lisboa e a música tradicional portuguesa tout court.
Paganini e os seus Caprichos e Concertos para Violino são modelos evidentes em peças como Movimento Perpétuo (mistura de um Capricho de Paganini com O Voo do Moscardo de Rimsky Korsakov), mas também na parte final das Variações em ré menor, das Danças Portuguesas nº2 ou na Fantasia nº2, peças que, com o seu uso de passagens rápidas e regulares em escala, harpejos e outras figurações, difíceis de conseguir na guitarra, revelam a virtuosidade de Paredes. Que, nestas peças, até se deixa ouvir, pelo menos na gravação de estúdio de 1967, a respirar fortemente a cada passagem particularmente exigente…
Chopin é talvez a mais forte presença clássica em CP, particularmente na Valsa que, tocada em piano, passaria facilmente por uma das conhecidas valsas do compositor polaco, cujo lirismo – de pendor operático e sabor popular – tanto se aproxima da “démarche” de Paredes, que, tal como Chopin, adorava Canto ao ponto de chegar a ter aulas na Juventude Musical Portuguesa, canto lírico esse que é evidente na música de ambos, melódica por natureza.
O estudo da música clássica dar-se-á através da sua mãe, que inscreveu o pequeno Carlos na Academia de Amadores de Música de Lisboa, que foi também a minha escola. “Em pequeno, a minha mãe, coitadita, arranjou-me duas professoras de violino e piano. Eram senhoras muito cultas a quem devo a cultura musical que tenho”.
A admiração pela “Grande Música”
Não obstante estes estudos, ou por causa deles, CP carregava em si um sentimento de inferioridade, como demonstra este excerto de um artigo de Fausto Neves: “Desde que tinha chegado a Espinho, para participar no Festival de Música local, Paredes não cessava de nos interrogar acerca do cabimento da sua presença num festival dedicado à música clássica, de repetir à exaustão a ‘pequenez’ da sua guitarra e das suas ‘modinhas’ num Festival que trazia a Espinho nomes sonantes da música erudita portuguesa e internacional” (Fausto Neves em 2021, Festival Internacional de Música de Espinho)
No seguimento deste texto, vários outros músicos que conheceram bem CP revelaram-me que este lhes confessara que, se tivesse estudado mais música, no sentido do ensino clássico de Conservatório, teria evoluído mais, opinião eventualmente incorreta (Erik Satie, outro grande intuitivo, foi estudar “a sério” e “saber mais” de música aos 40 anos: a sua música inicial continua a ser a pedra de toque da sua obra, e não as peças finais…) mas que se compreende, dada a sua admiração incondicional pelo universo da também chamada “Grande Música”.
Esta, a “Grande Música”, é que por vezes o menosprezou. Falando da Academia de Amadores de Música, na qual estudei com Fernando Lopes-Graça, lembro-me de alguém me ter contado, penso que durante a Festa do Avante, onde ambos se encontravam, que o Paredes, pretendendo mostrar uma passagem na guitarra, ou pedir uma opinião a Lopes-Graça, este lhe terá virado as costas. A idoneidade da pessoa que me contou esta história é sólida, e tendo eu conhecido o Graça e as suas casmurrices estéticas, não duvido muito da sua veracidade…
O fado e a guitarra estavam, mesmo com o exemplo do CP, do meu pai, Octávio Sérgio (outro grande inovador que, aliás, tocou muito com o pai do Paredes), e de alguns outros, muito ligados, na mente de Lopes-Graça, ao Estado Novo, outro mito que urge dissipar de vez. Peças para filmes inovadores e críticos de uma sociedade triste e cinzenta, como Verdes Anos – a música mais conhecida de Paredes ainda hoje – desmentem imediatamente essa falsa noção, sendo que o próprio Fado de Lisboa – também uma inspiração inequívoca em CP, que o transfigura instrumentalmente – estava a começar a participar na revolta ao salazarismo tacanho.
É com o LP de 1967, Guitarra Portuguesa, que o seu génio e a sua originalidade eclodem
O percurso de Carlos Paredes na guitarra é próximo, mas ao contrário, daquele que foi seguido por muitos compositores oitocentistas e de inícios do século XX, como Bartók ou o próprio Lopes-Graça: tal como a música erudita “descobre” nos séculos XIX e XX a música popular, dentro e fora da Europa, CP “descobre” a música erudita e engloba-a na sua música “popular”. Os arranjos para cravo de Joana Bagulho, em particular, demonstram bem essa incrível fusão musical, que, tal como as de Gershwin, Piazzola e Kurt Weill, atingiu – e atinge ainda hoje – níveis enormes de merecida popularidade.
As primeiras gravações, com a Serenata, as Danças Portuguesas nº1 e as Variações em lá menor, embora seguindo em grande parte a grande tradição coimbrã revelam já em CP não só um exímio executante como um potencial grande compositor, um compositor que, claramente, ouviu os clássicos: marchas harmónicas, acordes menos usuais e certas linhas melódicas revelam esse amor pela música erudita. Mas é com o LP de 1967, Guitarra Portuguesa, que o génio e a originalidade de Paredes eclodem.
As peças desse LP revelam já todo um outro universo que, sem desdenhar a influência da tradição, é inequivocamente a “música do Paredes”. A linha melódica torna-se mais complexa, a harmonia implícita mais arrojada, a influência clássica já mais modernizada também, tornando por vezes a música, se retirada à guitarra e transposta para um piano, quase indistinguível da dita “erudita” (As Variações em Ré Maior, Fantasia e Dança são peças que, transpostas para piano, soariam a algo oriundo da pena de um Viana da Mota…).
Com Verdes Anos e Porto Santo, aquele o seu tema mais célebre, abre-se na música de CP uma espécie de “realismo social” que ilustra magnificamente os tempos sombrios que então se viviam.
Paredes não é um modernista como Octávio Sérgio que, influenciado por Stravinsky e outros compositores mais radicais do século XX, vai mais longe nos acordes e no ritmo, mas antes, como referi, um músico que deriva da tradição romântica, quer da de Coimbra quer da clássica.
O lirismo operático, italianizante, e a virtuosidade paganiniana dão as mãos nestas peças de cariz popular mas que passariam facilmente por peças de salão oitocentistas de grande qualidade.
Influências musicais
Novamente, toda a primeira parte da introdução da Melodia nº1, transposta para piano, seria facilmente confundida com o início de uma sonata de Beethoven, passando depois a música para um registo claramente mais popular. A parte final, com as suas marchas harmónicas, não obstante, continua a dar a esta peça um sabor clássico-romântico de música erudita. Não fora o timbre da guitarra…
Já a Melodia nº2 quase transpõe para a guitarra e para uma ambiência portuguesa os inícios de algumas das Rapsódias Húngaras de Liszt, curiosamente inspiradas por esse instrumento peculiar que é o cimbalão, que possui algumas características sonoras próximas da guitarra, não obstante ser um instrumento totalmente diferente, só tendo em comum as cordas de aço.
Verdes Anos, na sua sonoridade claramente “Parediana” revela a forte influência do fado de Lisboa, sem o qual não existiria. É, de certa forma, como as Canções sem Palavras de Mendelssohn, um “fado sem palavras”, mais expressivo, quiçá, do que os que usam um texto para exprimir um sentimento. Tornar-se-á o hino de uma década tensa e de um país triste, envolto no cinzentismo da Ditadura.
O Divertimento, de recorte neoclássico ou, melhor, neo-renascentista, mais uma vez, orquestrado ou tocado em piano, seria facilmente confundido com uma peça erudita, e evoca a geração de um Joaquin Rodrigo em Espanha e a evocação destes de um passado medievo/renascentista.
O final, com o seu sabor de festa popular torna o Divertimento uma das peças mais extrovertidas e neoclássicas de Paredes. Os próprios títulos das peças, valsas, danças, melodias, romances, divertimentos, e etc., evocam o classicismo e o romantismo de salão e as “peças características” desse período.
O Romance nº1, uma das melhores peças de Carlos Paredes, na minha opinião, lembra, curiosamente, o uso das dissonâncias expressivas no 1º Concerto para Violino de Prokofiev, peça que Paredes poderia conhecer, atendendo a que um dos seus instrumentos de infância foi, precisamente, o violino.
A Pantomima, tocada sem acompanhamento, é novamente, a par com o Divertimento, uma peça neoclássica que evoca a Idade Média e o Renascimento, bem como alguma música popular tocada em Sanfona, com os seus ostinati e a melodia de cariz modal, as imitações de trompas, qual moderna “Música de Trovadores”…
As Variações sobre uma Dança Popular misturam o popular, o neo-renascentista e as harmonias mais complexas, tornando esta uma das suas mais belas e complexas e audazes peças, de um ponto de vista harmónico, enquanto a Canção continua na senda de Verdes Anos e, mais uma vez, transposta para piano seria facilmente confundida com uma romântica peça de salão de grande beleza.
As peças mais tardias
As peças mais tardias, depois do golpe de génio dos dois primeiros discos, não apresentam grandes novidades estilística ou técnicas, mas afastam-se cada vez mais da tradição coimbrã da qual, no fim, já nada ou quase nada resta.
Se, tal como em Chopin, não há necessariamente uma evolução radical como a que se encontra em Beethoven ou em Verdi, entre as primeiras e as últimas obras de Paredes nota-se uma personalização cada vez maior da sua linguagem.
As peças dos anos 80 em frente continuam a revelar um génio melódico e interesses fora da linguagem popular que se mantém inalterados: o pendor lírico operático de cariz italianizante, a música de salão oitocentista, Chopin, Beethoven, Liszt, os nacionalistas russos, e a música popular portuguesa de raiz campesina, esta cada vez mais presente. Os virtuosismos mais “paganinianos” quase cessam, em favor da melodia, do puro lirismo.
Canto do Rio é, assim, uma das melhores peças de Paredes, que mais uma vez mostra o que deve à música clássica. A Montanha e o Rio, Marionetas e Dança Palaciana são, para além de uma beleza ímpar, peças mais uma vez de influência neo-renascentista e neo-barroca, neoclássicas de espírito, evocando novamente Joaquin Rodrigo, esse grande compositor espanhol, autor do célebre Concierto de Aranjuez, para guitarra (clássica) e orquestra, obra que Paredes decerto, como todos nós, conheceria.
Por fim, nessa leva outonal de peças, é Raiz que evoca, mais do que outra qualquer, a genuína melodia popular portuguesa, no seu despojamento harmónico e no ritmo que acompanha a melodia, inspirada em adufes. Carlos Paredes demonstra mais uma vez, se tal fora necessário, que a mistura de tradições, a popular e a erudita, só tiveram a ganhar com esse encontro, e nada a perder.