Teoria do Hífen Patrícia Portela (PP) começou a editar na Caminho em 2007 (Odília) e, em 13/14 anos, publicou mais cinco romances, cada um diferente dos restantes, num autêntico fogo de artifício de originalidade e criatividade: Para Cima e não para o Norte (2009, um dos seus melhores romances), Banquete (2012), A Coleção Privada de Acácio Nobre (2016), Dias Úteis (2017), e agora Hífen – talvez o seu melhor romance. Com Hífen, não hesitamos em escrevê-lo, PP estatui-se como uma das melhores escritoras portuguesas que o século XXI nos tem oferecido.
As suas narrativas, como já se tornou habitual, giram em torno de uma ideia essencial, singular, extraliterária, cujo sentido o romance concretiza, tornando-se assim, cada um e todos, uma alegoria do mundo, do mundo atual. O mesmo acontece em Hífen: a ideia que o alimenta divide-se (parece-nos) em três partes:
1) a de que vivemos, hoje, em plena distopia real, não imaginada, fantasiada romanescamente, mas absolutamente real (cf., entre possíveis exemplos, p. 244); 2) a distopia vivida exige, como contrabalanço civilizacional, a criação de uma utopia: assim nasceu a Flandia, ilha paradisíaca, a civilização do algoritmo, da tecnologia mais avançada, substituto do humano;
3) porém, a Flandia, no seu afã de normalização comportamental da totalidade dos seus cidadãos (os “flans”), revela-se uma sociedade eletrónica e informática, fundada no algoritmo, tão opressiva como uma ditadura política tradicional.
Em síntese, todas as utopias trazem no seu ventre distopias violentíssimas (física e/ou psicologicamente), e todas as distopias trazem no seu ventre o desejo de novas utopias, que, posteriormente, se revelam como verdadeiras distopias – é a lição filosófica do romance. Não é possível, portanto, separar utopia de distopia, já que se encontram umbilicalmente ligadas: é o sentido do título Hífen, como traço que simultaneamente separa e une, como se, filosoficamente, PP nos quisesse dizer que a História é não só um contínuo equilíbrio-desequilíbrio entre distopia e utopia e que, a cada momento temporal, uma sociedade, material e politicamente, é o resultado cultural efetivo desta contradição.
Neste sentido, mais do que cada um ou os dois elementos da contradição, o que se torna relevante na História reside no Entre, simbolizado pelo hífen (cf. “Hifanação”, p. 16, e o capítulo “Prólogo dos Infernos”, uma conversa entre a deusa e o diabo, pp. 31 ss., em tom jocoso, em que os dois deuses revelam a sua incapacidade para dominar os homens. Do ponto de vista literário, desdramatiza a conversa entre deus e o diabo d’O Evangelho de Saramago)
Estrutura do romance Para além da ideia essencial, tessitura narrativa do romance convertido na figura da alegoria, PP possui uma conceção de romance que, sem as anular, desafia as categorias tradicionais deste género literário. Com efeito, lá encontramos:
a) o Espaço (cf. “Índice de Geografias”, com uma cartografia esclarecedora, p. 27);
b) o Tempo, concretizado numa visão “entre” a atualidade, síntese e resultado do passado, e o futuro;
c) um “Índice de Personagens”, aliás, bem descritas e singularizadas, ainda que misteriosas (enigmáticas e alegóricas) a uma primeira leitura, e, numa segunda, reveladoras de uma fortíssima carga de intertextualidade (Goethe, Fausto, Mefistófeles, Virginia Woolf, Eva da Bíblia, a referência a um certo “Diretor do Teatro-Transnacional”, acusado de ser o “Dantas da sua era” (pp. 22-23), até a protagonista, Ofélia, parece ser inspirada na “Ofélia” dos pintores pré-rafaelitas, aliás, citados no texto, outros, todos sob a sombra inspiradora e omnipotente de Robert Musil;
d) lá está uma nota antecipatória (p. 17), esclarecedora que, estilisticamente, pisca o olho ao realismo, não se vá pensar que tudo o que é narrado nada tem a ver com a realidade que o leitor vive diariamente;
e) uma “Nota Prévia” sobre o modo de composição do romance: “fragmentos de diários, cadernos, pensamentos e reflexões de vários seres, humanos e não humanos”. A autora informa: “Não acrescentei deduções a raciocínios não terminados nem teorias a comportamentos ilógicos. Não redigi conclusões ficcionadas sobre a matéria à qual não tive acesso” (p. 19). Pressupomos que, com esta “Nota Prévia”, PP quer significar que, se Hífen – é um romance capitularmente descontínuo e referencialmente fragmentário, fazendo apelo a múltiplas origens (“Alfabeto de Maria do Carmo”. “Cadernos de Ofélia”, “Ementas” gastronómicas estranhas de Annick Gernaey), é igualmente uma narrativa que possui uma unidade profunda, dada justamente pela teoria do “Hífen”. Finalmente,
f) a originalidade de um léxico próprio, com palavras e expressões criadas para este romance, não dicionarizadas.
Se cruzarmos Hífen – com o anterior romance de Patrícia Portela, Dias Úteis, constatamos que a relação umbilical entre distopia e utopia como centro da evolução histórica, desenha o quadro da História como a de um Jogo: a Vida é Jogo, viver é jogar: “[o Jogo] é como viver, para quem ainda não tenha percebido do que se trata” (Dias Úteis, p. 22). Mas, ao contrário do jogo desportivo, a Vida dá-se em “resultados que primam pela arbitrariedade, pela aleatoriedade, pela impercetibilidade, pela irracionalidade (…) sem que algum regulamento ou receita venha a ser adiantada” (Idem, p. 13), e “é sempre um inesperado acaso que o decide” (Idem, p. 14). Foi justamente o que faltou à Flandia, intentando aprisionar a história num algoritmo matemático profundamente racional com vista a anular a imprevisibilidade, a irracionalidade.
Seria um crime de lesa cultura o leitor não ler este romance. Noventa e nove por cento dos romances publicados não farão história, este fará.