Olha, as cheias da semana passada encheram esta piscina desta construção aqui em frente, só para tu veres o que foram as inundações nestes dias. Mas as obras nem pararam. Nem ali, nem neste prédio ao lado. Esta semana tiraram os tapumes, a vista já ma tiraram há quatro anos e ninguém embargou a obra, pois claro que não, então? Aqui não se pode construir nada com mais de três andares mas a câmara pode. Chamam-lhe habitações jovens, dizem que estão a “reurbanizar” o concelho, agora que é impossível viver em Lisboa. Está muita gente a mudar-se para aqui. Lembras-te do Zé e da Joana? Também se mudaram para aqui por perto, há uns três ou quatro anos, mas mais lá para dentro, foram despejados lá da casa na Penha de França. Bom, o que é certo é que nem um anúncio vi a vender estes prédios estes anos todos! As casas apareceram já todas vendidas esta semana, tudo já com luz e campainha na porta, as chaves devem ter ido direitinho para as mãos dos filhos dos empreiteiros, dos deputados e dos vereadores da câmara. Não compensa ser decente. Uma pessoa faz tudo o melhor que pode e ao mínimo desleixo fica endividado até à ponta dos cabelos, enquanto outros não têm licença de construção e vendem apartamentos de luxo por construídos em terrenos públicos por milhões. E depois não há fiscalização. Então como poder haver?… Alguém decente se mete num gabinete da câmara a inspecionar obras públicas? Nem pensar, só um louco como o meu pai.
Eu digo-te… Eu nunca me vou esquecer do dia em que vi o meu pai a chegar a casa e a chorar copiosamente. Eu devia ter aí uns 20 anos, portanto foi aí há quase trinta! Lembro-me perfeitamente. Estava já a trabalhar com a Lúcia nos armazéns. Cheguei a casa, ainda vivia com os meus pais nessa altura, e dei de caras com o meu pai, lívido, sentado à mesa, sem abrir a boca, a cabeça apoiada entre as mãos, a chorar compulsivamente. Estava inconsolável. Eu e a minha mãe nem sabíamos o que fazer. A minha mãe só lhe perguntava: Então Vasquinho, o que se passa? O que aconteceu? Sentes-te mal? Dói-te alguma coisa? Não queres comer nada? Uma sopa? Preferes um chá? Umas torradinhas para enganar o estômago? O meu pai não levantava os olhos da mesa, como se tivesse vergonha.
Estava ali, há duas horas sentado, sem se mexer, abanava de vez em quando a cabeça e só dizia: Não contem comigo para isto! Não contem comigo para isto…
Há dois meses que era vereador do pelouro da habitação lá na câmara. Andava muito animado, a fazer grandes mudanças, adorava a equipa, os projetos que tinha em mãos… até o dia em que lhe chegou esta senhora, de noventa e dois anos, que não sabia ler nem escrever e que tinha recebido várias cartas da câmara e não sabia de que tratavam. Dois meses, Patrícia, o meu pai estava a trabalhar na câmara há dois meses! Ao que parece, um vizinho indecente que queria comprar o andar desta senhora tinha denunciado a sua marquise ilegal. Como deves imaginar, ali naquela zona todas as casas tinham uma marquise ilegal. Famílias de seis e sete pessoas a viver em T1’s na periferia de Lisboa, encaixilhavam uma varanda às três pancadas com umas placas de alumínio e está feito, montavam mais um quartito extra p’rás crianças ou uma sala de jantar.
Bom, esta senhora vivia sozinha. Já não tinha filhos, nunca tinha tido netos, não era dali por isso não tinha família e não sabia ler. As cartas foram-lhe chegando, chegando, e ela olhava para as cartas, via os desenhos lá dos logotipos da câmara no papel e achava que aquilo era uma promoção qualquer. Era uma senhora simples, pagava as suas contas nos correios todos os meses, recebia a pensão num envelope, estás a ver o género? Até que um dia percebeu que já tinha uma multa de vinte mil euros. A senhora chegou à câmara desesperada, sem saber o que fazer à vida. O meu pai acabou por falar com a senhora, olhou para a carta registada que ela trazia e disse-lhe: “Tenha calma, minha senhora, tenha calma, que vamos encontrar uma solução. Deixe-me ver a sua situação com os serviços e perceber como podemos tratar disto. No pior cenário, vai ter de destruir a marquise mas não fica na rua”. O meu pai lá descansou a senhora e foi falar com os serviços. Dos serviços disseram-lhe: “Nem pensar! Não se pode abrir uma exceção para a senhora! Fazemos isso, e daqui a nada temos aí toda a gente à porta a pedir para fazermos o mesmo. Ou se faz para todos ou não se faz para ninguém!”
O meu pai lá tentou explicar que esta era uma situação especial, que a senhora não sabia ler nem escrever, que se tratava de um caso extremo que se poderia resolver facilmente nos serviços, que podíamos pedir à senhora para deitar abaixo a marquise ilegal e ficava tudo bem para todos. Mas os serviços insistiram. O processo chegou a ser discutido em assembleia e todos estavam de acordo: não se podem abrir exceções! A senhora pagava os 20 mil euros ou tinha um processo judicial à perna para servir de exemplo e para se acabar de uma vez por todas com as marquises do concelho, “quanto mais depressa se tratar desta situação melhor”.
O meu pai ainda lutou para resolver a situação da senhora. Até o dia em que percebeu que tinha de a chamar para lhe dizer que tinha de pagar 20 mil euros e procurar outro sítio para morar enquanto pagava a dívida a prestações.
Como deves imaginar o meu pai ficou arrasado e depois de muito chorar, pediu-nos ajuda para escrever uma carta.
No dia seguinte, pôs o seu melhor fato e entregou ao presidente da Câmara uma carta em mão: “Fechas os olhos a negócios turvos, aceitas luvas para construíres apartamentos de luxo mas és inflexível com uma senhora de 90 anos que não sabe ler nem escrever e vive numa casa com uma marquise que provavelmente já lá estava quando se mudou. É assim que queres ser rigoroso? Não contes comigo para assinar estas decisões. Tens aqui a minha carta de demissão.”
E terminou assim a sua grande carreira política. Um homem que sempre lutou para melhorar tudo à sua volta. Nunca mais me vou esquecer deste dia e do orgulho imenso que tenho do meu pai. E de como aprendi, cedo demais, que a luta se faz com muitas desistências, muitas desilusões, e na maioria das vezes, longe dos lugares de poder, onde seria tão mais fácil endireitar este condomínio fechado e de luxo para uns, e de merda e de vida embargada para todos os outros. J