Quando esta crónica for publicada devo estar em Praga, onde nunca tinha ido. Para participar num colóquio literário cujo tema, em forma de pergunta, é “Século XXI – Que modernidade hoje?”. Presentemente dia aceito poucos convites (ou esta vida de bordo há-de matar-me, bem avisou o engenheiro Campos) mas disse logo que sim ao amabilíssimo Joaquim Coelho Ramos, diretor do Instituto Camões em Praga, que está a organizá-lo na Universidade Carolina com a colaboração da Sociedade Checa de Língua Portuguesa. Não só para conhecer Praga (dizem que das cidades mais belas da Europa) mas também pelo interesse do tema.
É claro que não sei qual vai ser a modernidade literária que poderá haver, e se alguém soubesse talvez já não fosse modernidade. Mas acho que virá a propósito manifestar o desejo de que, qualquer que seja, resulte da interpenetração de culturas autónomas neste globalizado mundo atual. Onde, ao mesmo tempo que as fronteiras económicas entre nações de vários continentes estão a ser dissipadas, há uma crescente multiplicidade cultural dentro de nações que até recentemente se consideravam culturalmente coesas a despeito dos seus desnivelamentos sociais e económicos internos.Também não deixarei de acentuar a significação cultural dos trágicos problemas dos refugiados que levaram a contrastantes atitudes de esclarecida generosidade e de obscurantista xenofobia por parte de alguns estados europeus E acho que virá a propósito citar o verso de Camões: “Cada um com o seu contrário num sujeito”.
Mas acontece que, por razões políticas e económicas, a língua da globalização é a inglesa, que se tornou universalmente tão dominante que as culturas veiculadas por outras línguas estão a ser marginalizadas. Modernidade pressupõe uma tradição da qual se parte e que se modifica. A modernidade de uns não é necessariamente a modernidade de outros. E uma modernidade exercida, por exemplo, dentro da tradição cultural checa ou portuguesa e manifestada nas línguas dessas culturas, nem sempre poderá ser entendida como modernidade pelas culturas anglófonas tornadas linguisticamente dominantes por circunstâncias políticas e económicas.
É certo que, para a literatura, há as traduções. Foi por via de traduções que, por exemplo, o colombiano Gabriel Garcia Marquez se tornou determinante para a modernidade em língua inglesa de, por exemplo, o indiano Salman Rushdie. E é de saudar que, recentemente, o grande prémio literário Man Booker tenha decidido alargar as candidaturas a obras em tradução. Mas pode ter também como consequência que só quando traduzidas para inglês as obras escritas noutras língua sejam consideradas culturalmente relevantes. Atualmente, apenas 3% das obras literárias publicadas em inglês são traduzidas de outras línguas. A resultante filtragem tende a depender mais da traduzibilidade do que da qualidade, da semelhança mais do que da diferença, do previsível mais do que do surpreendente. Nada disso é um critério de modernidade.
A modernidade que foi de um Camões ou de um Pessoa manifestou-se na língua em que escreveram e emergiu da cultura que os formou. Quando Camões é traduzido, a sua modernidade fica diluida na semelhança com obsoletas equivalências literárias na língua em que está a ser traduzido. Quando Pessoa escreveu em inglês, foi um poeta imitativamente antiquado e não criativamente moderno. Os melhores escritores não pensam a sua língua, são pensados por ela. Depois é bom que sejam traduzidos, desse modo enriquecendo as tradições literárias de outras línguas, sabendo-se no entanto que uma tradução é o equivalente da cópia de uma pintura. As feições da Mona Lisa estão lá todas, mas falta-lhe o essencial. Falta também que lhe possam acrescentar um bigode iconoclástico.
Tive há um par de anos uma curiosa conversa com um escritor que muito admiro, Tom Stoppard. Escreve em inglês e é originário da República Checa. Trocámos algumas palavras de cortesia, e quando ele percebeu que, embora viva em Londres há mais de meio século, escrevo em português, perguntou apenas: “Como se pode escrever numa língua que ninguém lê?” Não era uma pergunta agressiva. Não estava a ser hostil. Indiretamente, a pergunta era dirigida a si próprio e não a mim. Porventura a considerar que ele também teria escrito numa língua que “ninguém lê” se, devido à ocupação nazi do seu país de origem, quando ainda era pequeno, não tivesse sido levado para a Inglaterra, onde se tornou num relevante escritor “inglês honorário”, como alguém o caracterizou.
Há, no entanto, algo de insidiosamente iconoclástico no modo como o “inglês honorário” Tom Stopard (ou, para lhe dar o nome original, Tomás Straussler) se integrou na tradição inglesa. Várias das suas peças teatrais são releituras desestabilizadoras de obras e autores do cânone literário inglês, que assim simultaneamente assumiu e subverteu, manifestando nelas uma tradição anarquista, absurdista e surrealista reminiscente do modernismo checo do início do século passado. Por exemplo, Shakespeare em Rosencrantz and Guidenstern are Dead, Oscar Wilde e James Joyce em Travesties, Byron em Arcadia, A. E. Housman em The Invention of Love. Até que, depois de literariamente se ter anglificado, revisitou a História recente da sua antiga nação checa em Rock ‘n’ Roll.
Creio, em suma, que sem a modernidade que tinha havido no modernismo checo não teria vindo a haver a modernidade pós-modernista da sua obra inglesa. Mas não sei se este exemplo de integração cultural deve ser motivo de otimismo ou de pessimismo para a sobrevivência literária das línguas que “ninguém lê”.