Os Papéis do Inglês tem logo à partida o enorme mérito de recordar e recuperar a obra de Ruy Duarte Carvalho, um grande escritor de língua portuguesa, que está arredado das livrarias, com as obras esgotadas há vários anos.
É provável que este filme dê um impulso ao muito esperado plano de reedições da sua obra completa. Poeta, romancista, antropólogo, Ruy Duarte Carvalho (Santarém, 1947; Namíbia, 2010) foi uma das grandes figuras da cultura angolana que merece ser lido e relido (republicamos a sua autobiografia no site do JL).
É certo que um bom texto não faz necessariamente um bom filme – são demasiados os exemplos de adaptações fracassadas. Mas Os Papéis do Inglês alcança essa eficácia: consegue transmitir de forma sóbria e apelativa a riqueza do universo literário e biográfico de um autor sui generis, colocando no centro a questão da identidade.
Há uma história por trás deste filme que ajuda a contextualizá-lo. No cinema europeu, por norma, atribui-se a autoria dos filmes aos realizadores, mesmo sabendo que o cinema é uma arte coletiva, que implica um conjunto de mentes criativas e dificilmente um homem só. Mas neste caso seria muitíssimo redutor atribuir a autoria da obra apenas a Sérgio Graciano.
O filme faz parte dos projetos pessoais de Paulo Branco. Ou seja, ao contrário daquilo que é mais comum – o realizador apresenta as ideias para um novo filme a um produtor – aqui foi o produtor que teve a ideia para o filme e partiu em busca de argumentista e realizador. Tal de resto já tinha acontecido, por exemplo, com A Herdade, em que Paulo Branco pediu a Rui Cardoso Martins e Tiago Guedes que dessem corpo à sua ideia.
A relação de Paulo Branco com Ruy Duarte Carvalho vem de longe. Recorde-se que o escritor também tem uma curta carreira de realizador de cinema e televisão e foi Paulo Branco quem produziu o seu último filme, O Recado das Ilhas (1989). Também o convidou para integrar o júri no LEFFEST e nessa ocasião o terá desafiado a realizar um novo filme, ideia que este refutou. Branco decidiu então produzir um filme em volta da sua obra.
A escolha de José Eduardo Agualusa para a escrita do argumento parece extremamente óbvia – um escritor angolano, habituado a escrever para cinema, com uma relação de grande proximidade com Ruy Duarte Carvalho e a sua obra.
Já a escolha do realizador Sérgio Graciano é altamente inesperada. Trata-se de um realizador com um percurso profícuo, mas de grande irregularidade, sem nenhuma grande obra, e com alguns filmes confrangedores, incluindo o anterior, Soares é Fixe. Talvez por lhe ter sido dado mais tempo, em Os Papéis do Inglês, Graciano revela eficácia e um olhar que não conseguíamos descortinar noutros filmes.
Com o formato de ficção autobiográfica, Os Papéis do Inglês é um ensaio sobre a identidade angolana e, ao mesmo tempo, as identidades daqueles que optaram por ali ficar depois da independência e os outros que decidiram partir.
O ponto de partida do filme é uma espécie de Tesouro da Terra Madre. Ruy, a personagem principal, é um poeta antropólogo. Contudo, o que o move, aparentemente, não é um novo registo de algum povo nativo, ainda com elementos por conhecer, mas antes a busca do diário de um inglês que inclui, entre outras coisas, entrelinhas, uma espécie de mapa para um valioso tesouro.
Cria-se assim um ambiente de western, no longo deserto angolano, encarnando Ruy afigura de um cowboy explorador, que em vez de um cavalo, monta um 4 x 4.
De início o filme não resiste a ser um pouco explicativo, algo que até pode ser necessário para contextualizar o público internacional que o filme almeja.
Aos poucos, liberta-se dessa necessidade, tirando protagonismo à voz off, reforçando uma ideia de cinema. Essa ideia é intensificada pela imensidão da paisagem, de que o realizador tira partido de forma moderada e não exibicionista.
Ao mesmo tempo que há uma grande capacidade empática e é interpretativa dos atores, João Pedro Vaz e David Caracol, numa fase inicial, sendo que o primeiro tem uma força imensurável no rosto, precisando de pouco mais do que um esgar para convencer a audiência.
Como é típico na estrutura tradicional africana, o filme é feito de pequenas e grandes histórias. Mas passa a ideia de que vale a pena mandar parar o tempo para contar uma história do princípio ao fim. Tal acontece de forma simples na história de Jonas, que é uma história de colonialismo, até à independência.
E de forma ainda mais veemente no episódio de Kepa, que é uma história da independência e da guerra civil que dizimou o país. Ou seja, as duas grandes histórias que interrompem a narrativa principal cobrem, de alguma forma, o séc. XX angolano, de modo bastante original. Mais uma vez, como nos melhores road movies, a viagem é mais interessante do que o objetivo final. O filme é feito de histórias.
Os papéis do inglês, contudo, continuam sempre lá, como leitmotiv, elemento desencadeador da ação. É também o maior fator de mistério que justifica a pequena e as grandes tramas e dá a toda a narrativa uma dimensão quixotesca.
Jonas não será um pragmático escudeiro que sonha com a ínsula prometida pelo seu bem-amado cavaleiro, mas não deixa de embarcar numa certa loucura. Ruy encarna mais facilmente a figura do cavaleiro poético, com moinhos de vento interiores, mas sem Dulcineia para chorar os seus amores.
Caminham por uma senda que cedo percebemos utópica ou inconcretizável, até porque são personagens que se desviam de uma ideia de paraíso material – os seus sonhos parecem sempre distantes da sociedade consumista, em momento nenhum lhes adivinhamos os anseios de construir Palácios. A imaterialidade é o que melhor os define.
O filme ganha maior relevo na parte final, a partir do momento em que entra em ação a personagem de Kaluter, magnificamente interpretada por Miguel Borges. Kaluter, primo crescido em Angola, é a figura do aventureiro decadente. Optou por partir, mas sente a ausência de África como uma farpa espetada no peito.
É irascível e a vários níveis insuportável. Serve bem a ação sobretudo no confronto com Ruy… aqueles que optaram por partir depois da independência e os que optaram por ficar. Questionando também as opções daqueles que ficaram. Como se construiu ou destruiu um país. Mas sobretudo é a grande onde a Angola, à terra e o seu cheiro.
Quanto aos Papéis do Inglês, bem exprimido, é tudo poesia. E esse é o maior tesouro que Ruy Duarte Carvalho nos deixou.
Autor e personagem
Foi um “desafio” a que respondeu com um enorme “prazer”. José Eduardo Agualusa escreve há muito para cinema e conhece bem as suas limitações, nada compradas com as da ficção, território no qual o escritor é omnipotente.
“Se, num romance, quiser introduzir uma batalha com 15 mil soldados, basta-me seguir em frente, nada me impede. Num argumento sei que tenho de ter atenção às condicionantes”, afirma, ao JL, o escritor angolano.
E o que desde logo o entusiasmou no convite que Paulo Branco lhe fez para adaptar a trilogia Os Filhos de Próspero, de Ruy Duarte de Carvalho, que inclui Os Papéis do Inglês, de 2007, As Paisagens Propícias, de 2005, e A Terceira Metade, de 2009, foi justamente a “liberdade”: “Não tive qualquer restrição, pude trabalhar à vontade”.
Lançadas as mãos às obras, os desafios sucederam-se. Também porque estava a adaptar um autor que conheceu muito bem. “O Ruy Duarte de Carvalho foi meu amigo e uma pessoa muito importante no meu percurso”, adianta. Talvez por isso não tenha sido muito difícil transformá-lo em personagem, levá-lo para dentro do argumento.
“Foi uma escolha simples, porque o próprio Ruy era uma grande figura. Aliás, tenho o sonho de um dia poder vir a escrever não uma História da Literatura Angolana, mas uma História dos Escritores Angolanos, pois tantas são as personalidades fortes e curiosas”.
Desafio maior foi mesmo o de criar um fio condutor que percorresse os três livros da trilogia Os Filhos de Próspero. “Em Os Papéis do Inglês ainda encontramos um romance clássico, como se fosse a história do próprio Ruy Duarte de Carvalho a encontrar os manuscritos de um homem que acaba por se suicidar em Angola no início do século XX”, descreve Agualusa
“Os outros dois volumes, no entanto, menos conhecidos, não têm enredo, juntam antes prosa, poesia, antropologia, sociologia e ideias soltas para livros.“
O prazer de que o escritor fala encontrou-o no puzzle que teve de montar, movendo e fundindo personagens, ao mesmo tempo que compunha o retrato do amigo e mestre, pensando tanto no filme, como numa série ainda por anunciar. Luís Ricardo Duarte