“Sinto-me tão emocionado como quando acabei de escrever o livro”, foi o que Saramago disse a Fernando Meirelles após ter visto filme, pela primeira vez, numa sessão organizada no Cinema São Jorge. Subitamente, as suas personagens ganharam rostos e movimento. E a leitura do livro, eventualmente, passou a ser condicionada por aquelas imagens.Mas, ainda assim, Saramago ter-se-á sentido feliz por uma obra sua proporcionar um bom filme.
Ao princípio não queria ceder os direitos. Diz que as adaptações ao cinema limitam a imaginação.E ficara descontente com a experiência de A Jangada de Pedra, por Georges Sluizer. Mas, certo dia, os produtores visitaram-nos em Lanzarote e tudo se desfez. Saramago apenas diz: “É para verem a forma como faço negócios: gostei da cara deles, por isso aceitei”. Não terá sido alheio o facto do realizador, Fernando Meirelles também falar português. Nem o apreço que Saramago tem pela sua obra. Fernando Meirelles, 53 anos, é o mais conceituado realizador brasileiro da actualidade.
Foi aclamado pela sua obra A Cidade de Deus, que revelava a violência extrema e gratuita numa favela do Rio de Janeiro. Teve quatro nomeações para os Óscares e inúmeros prémios. Funcionou como um autêntico passaporte para Hollywood. O filme seguinte, O Fiel Jardineiro, já foi uma produção internacional, com actores de renome e falado em inglês. O mesmo acontece com Ensaio sobre a Cegueira que conta com Julianne Moore no principal papel. Mas para ele o mais importante é adaptar o romance de um escritor que muito admira.
Durante a rodagem, Fernando Meirelles publicou umas notas num blogue interno. Esse Diário de Blindness foi convertido em livro e agora publicado pela Quasi. O realizador admite ter assinado a cedência de direitos de autor mas, na sessão de apresentação da FNAC, mostrou-se modesto e surpreendido: “Isto são apenas umas notas que resolveram publicar assim. Eu até fico meio sem jeito de chamarem a isto um livro aqui ao lado do Saramago”.
JL: Quando começou a preparar o filme elaborou uma lista de perguntas para fazer a José Saramago.Que perplexidades eram essas acerca do romance? Fernando Meirelles: Comecei a fazer perguntas, mas ele não quis responder. Eram questões que todos os leitores se colocam, e a que o autor naturalmente não responde. Porque é que a mulher não fica cega, se ela tinha alguma coisa de especial? Na verdade, queria falar sobre cada personagem especificamente. Quem era esse homem da venda preta? E o bandido? Mas acho que ele estava certo em não querer discutir essas coisas comigo. Eu ficaria demasiado preso ao que ele me dissesse. Saramago
diz que a fidelidade excessiva é a morte de um filme. Ele disse-me que não gostou muito da adaptação de A Jangada de Pedra, porque usaram pedaços literais do livro, o que lhe pareceu artificial e mal encaixado. Tentaram ser tão fieis que estragaram o filme. Uma coisa é literatura, outra é cinema.
Descobriu a resposta para a pergunta: porque é que ela vê?
A minha resposta é… por acaso. Por alguma razão é imune, mas não é melhor que os outros, nem uma santa, nem nada.. Expliquei isso à Julianne Moore: “Você não é sensacional, não é uma heroína, só teve sorte… ou azar.” Há um autor de best-sellers americano chamado Robin Cook que fabrica vários enredos assim de epidemias, com escrita de má qualidade, ao contrário do que acontece com Saramago.
Como é que num filme se capta esta qualidade literária que vai para além da história em si?
Na verdade não tentei transpor o estilo do livro para o filme, as frases, a pontuação… Se tentasse inventar uma maneira de o fazer não iria funcionar, e talvez parecesse ridículo. Tentei entender a história, as várias camadas de leitura e, na medida do possível, encaixá-las no filme. O filme tem uma leitura aberta. Pode-se pensar na relação entre as personagens, ou nessa metáfora da nossa incapacidade de enxergar. Ou pode-se ver o filme como um drama político, psicológico ou filosófico. Hitchcock transformou alguns maus livros em bons filmes. Mas partindo de um bom livro aumenta a responsabilidade. Torna-se mais fácil ou mais difícil? Mais difícil porque aumenta a expectativa. Grande parte dos espectadores já conhece o livro e correse o risco da comparação. É muito mais simples adaptar um livro ruim, que ninguém conhece, de que ninguém espera nada… Mas já tinha adaptado o John Le Carré em O Fiel Jardineiro? É menos conhecido. Sem desmerecer o John Le Carré, O ensaio sobre a cegueira vai ser muito lido daqui a 50 anos. Não sei se isso acontecerá com O Fiel Jardineiro.
As personagens de Saramago não têm nome, nem terra, nem história… Tal torna difícil o impacto com o espectador no filme?
É verdade que o filme tende a ficar frio. O Don McKellar, quando estava a fazer o roteiro, disse que sentiu falta de criar um pouco de identificação para o espectador. Então começou a dar nomes, histórias… Foi até certo ponto mas depois parou: apercebeu-se de que aquele não era o Ensaio sobre a cegueira que tanto o tinha impressionado.
Como realizador foi um risco?
Em geral, na estrutura de um filme, os primeiros 10, 15 minutos são ceninhas para fazer o espectador se interessar pelas personagens. Aqui não tinha, porque logo na primeira cena ele fica cego.O espectador não tem tendência para gostar daquele japonês. Isso é um problema, dá uma certa frieza no começo do filme. Comprovei em vários lugares do mundo, que as pessoas gostam mais do filme quando o vêem pela segunda vez. Tem a ver com essa identificação. É um filme para se assistir duas vezes. O que é bom para a bilheteira e para a Castelo Lopes.
O Saramago diz que evita ceder direitos porque não gosta de ver a cara das suas personagens.
Agora quem ler pela primeira vez o livro vê um japonês e a Julianne Moore… Sim vai-se fazer outra leitura, depois do filme. A capa da nova edição já tem a Julianne Moore. Mas acho que um livro tão consistente, não perde nada, acaba por ser um detalhe.
Optou por não relacionar nenhum elemento com o universo português. Porquê? Foi o
Saramago que pediu que o filme fosse falado em inglês e que acontecesse numa cidade não identificável.
Porque não é uma história sobre um país específico, ou sobre um regime… Se mostrássemos Lisboa, iriam comentar que era sobre o regime português, sobre o Salazar, etc. Queremos falar sobre o ser humano, sobre a natureza humana, num espaço genérico.
Houve um fenómeno de hipersensibilidade à violência do filme? Como se explica? Nesta remontagem isso diminuiu. Mas a primeira versão, estava um pouco mais forte, nos primeiros testes que fiz muita gente saiu nas cenas de violação. Na verdade, dei uma ‘aliviada’ porque o filme parecia desequilibrado. Para não parecer um filme de uma cena só.
Se calhar o que custa aos espectadores é que aquelas pessoas somos todos nós, a natureza humana que se torna desumana numa situação de caos. Como aquela frase que vem no filme, “difícil é abrir os olhos”. Nem sempre estamos dispostos a ir a esses lugares sombrios. Nem sempre queremos lidar com esses coisas que a gente tem dentro. Ainda mais neste momento de crise, em que o mundo se está desorganizando, e ninguém quer lidar com problemas.
Normalmente o horror está associado à escuridão.
Foi difícil dar um tom opressivo a uma coisa clara e luminosa? A história pedia que fosse na claridade, porque as pessoas são inundadas pela luz. Conseguimos fazer com que tudo fosse opressivamente claro.
A escolha da Julianne Moore teve a ver com esse lado luminoso que procurava para as cenas.
É que ela também tem esse ar… Precisava de uma mulher entre os 48 e os 50 e ela estava na minha lista de actrizes favoritas.
Foi uma coisa de fã. Queria que ela se mantivesse ruiva, porque a achava bonita assim, mas no dia em que nos reencontrámos em Toronto, uma semana antes de começar filmar, ela apareceu loira. Abriu a porta e disse “surpresa!” No diário da rodagem diz: “Quando tudo na cena está ruim corta para o close da Julianne Moore e aí é xeque-mate” Aconteceu? teve a tentação de fazer isso muitas vezes? [Risos] Ela é tão consistente que mesmo parada, quieta, pensando, coloca-se dentro da história.
Os seus filmes têm um estilo, uma linguagem própria. Há traços que se mantêm, como o movimento da câmara em busca de detalhes… Os meus filmes têm uma cara, também pelo meu trabalho com o fotógrafo César Charlone.
Filmamos sempre com duas, três, às vezes quatro câmaras. Pedimos para os actores entrarem e fazerem a cena deles, sem se preocuparem com nada. Nem lhes digo onde está a câmara; às vezes vêem-nas outras não. Em cada take, em cada repetição, mudamos a câmara ou a lente.
Assim, na hora da montagem fico com muitas opções.
Como interpreta a metáfora do livro? Fala-se da agnósia que é um fenómeno óptico de ver mas não consegue identificar o que se vê.
Neste livro há o quê? Esta epidemia é uma espécie de agnósia moral? Não só no livro, também na realidade, somos seres muito cegos. Não nos conseguimos reconhecer, nem saber quem é o outro. Vivemos numa cegueira. Há várias maneiras de nos conhecermos: pode-se fazer terapia durante 20 anos, meditação, passar por sofrimentos muito grandes, mas o facto é que a gente não se conhece. O livro é sobre a nossa incapacidade. Como essa crise financeira. Como é que não a vimos chegar? O mundo inteiro, milhões de pessoas trabalham com a coisa e não vêem que estão caminhando para aí. De repente aparece, e é uma surpresa para todos. A gente gosta de ser cega.
O cão é sempre um elemento importante nos livros de Saramago… O Saramago disse que não gostou nem um pouco do nosso cão. Achou que deveria ser um cão mais agressivo, mais sujo. Ele disse: “O cão que você arrumou é muito bonitinho, você errou no cão”. Enfim… Este é o livro do Saramagi que mais facilmente se poderia adaptar ao cinema? Sim, se bem que O Evangelho Segundo Jesus Cristo também dava. Dá sempre.
As mesmas personagens continuam no Ensaio sobre a lucidez. Não pensa fazer uma sequela? Não, quero fazer agora um filme leve, simples, cheio de esperança. Talvez uma comédia.
Mas esse próximo filme será falado em português? Ainda não sei. Ia começar a rodar para o ano, mas se calhar vou tirar umas férias. E se começar a gostar estico as férias e fico um ano inteiro sem fazer nada. Estou a trabalhar muito há demasiado tempo. Talvez por estar cansado, se você me perguntar pelo próximo filme, apenas digo que será simples, muito simples, com uma equipa pequena.
Um filminho bem leve.