Antes de mais um esclarecimento: parece-me claro que a leitura de Forget Sorrow seria enriquecida com a análise de pelo menos duas obras anteriores de Belle Yang que têm uma temática semelhante (The Odyssey of a Manchurian e Baba: A Return to China Upon My Father’s Shoulders). Mas apenas se encontram em sítios de livros usados, e a crise não dá para mais. Por outro lado é também líquido que esta é mais uma “memória gráfica” (“a graphic memoir” é mesmo o subtítulo), e toda a discussão em torno de validar este tipo de livro enquanto BD “séria” referido em textos anteriores poderia repetir-se aqui. Mas não é preciso: Forget Sorrow é um belo livro, que não precisa de justificações, apesar de não as conseguir evitar.
O mais intimista Forget Sorrow, e o mais épico Une Vie Chinoise têm em comum abordar a história da China contemporânea, e recomendam-se enquanto leituras complementares a um tópico rico e controverso. Mas é bom discutir exatamente onde reside a complementaridade.
Se ambos são baseados em factos reais, e se sente uma forte sub-corrente de homenagem aos respetivos progenitores, Forget Sorrow (Esquecer o Sofrimento) de Belle Yang é (na senda de Maus) uma espécie de biografia familiar indireta, enquanto Une vie chinoise (Uma vida chinesa) de Li Kunwu é, na sua maior parte, autobiográfico, balizado em cada volume por uma parte do percurso da China contemporânea: O tempo do pai marca o início (e os excessos) da Revolução, O tempo do partido o estabilizar (e os excessos) do sistema e O tempo do dinheiro os efeitos (e os excessos) da ascensão do capitalismo, estilo chinês. Por outro lado, há em Belle Yang uma componente óbvia de auto-terapia comum a outros livros discutidos neste espaço: contar a história da sua família paterna é uma maneira de lidar com a sua identidade e estabelecer ligações com o pai, ao mesmo tempo que evita enfrentar os seus próprios demónios pessoais (ou os enfrenta indiretamente). É, desse ponto de vista, uma biografia contra a autobiografia (“Esquecer o Sofrimento” é, de resto, o nome chinês da autora), algo que a ajuda a transcender as limitações do género. Em Li Kunwu o objetivo principal (talvez algo ingénuo) é informativo, dar a conhecer a história recente da China através de um dos seus habitantes. Apesar de ser claramente uma história individual, o indivíduo está aqui sempre sujeito ao coletivo. Na verdade, quando tal não sucede a obra perde-se um pouco. Em Forget Sorrow passa-se o oposto: na narrativa de Belle Yang os indivíduos vivem por e para si mesmos. Há uma caracterização cuidada de cada um dos diferentes elementos da família do pai da autora, nas suas características, hábitos, filosofias de vida, e de que modo encaixam em complexos jogos de poder familiar. O uso equilibrado de momentos do dia a dia misturados com episódios mais ligeiros ou trágicos é muito conseguido, criando uma narrativa rica e credível; histórias que não parecem uma história. As alterações que começam a suceder no país são abordadas de um modo indireto, na maneira como afectam as diferentes personagens, e mudam as relações entre elas.
Essa é a principal diferença entre os dois relatos, sublinhada por duas outras, interligadas: a distância à China e o porquê dessa distância. Belle Yang é filha de imigrantes radicados nos EUA via Taiwan; Li Kunwu viveu sempre na China. Embora a realidade seja um pouco mais complexa, o pai de Yang vem de uma família de proprietários rurais abastados, o de Li era quadro comunista, a mãe camponesa. Não querendo cair no simplismo de privilegiados versus explorados, esse elemento está presente, e não há maneira de o ocultar sem definir preferências (a posição de Yang é, desse ponto de vista, muito semelhante à de Marjane Satrapi). As narrativas estão pois de lados opostos da revolução maoísta , embora em momento algum haja cedências a ritmos panfletários. É por isso que a sua leitura paralela se torna particularmente enriquecedora.
Seguindo as normas do seu país adotivo (os EUA), para Belle Yang a situação político-social é secundária à narrativa familiar. Li Kunwu interiorizou a Revolução: na sua história família, partido e China confundem-se. Na verdade a vida privada de Li enquanto adulto, tal como a de Yang (embora por motivos distintos), apenas surge indiretamente, quase clandestina. Em Forget Sorrow os erros e excessos da Revolução são vistos como tragédia sem remissão que destruiu um passado rico sem nada dar em troca, em Une vie chinoise os mesmos factos são encarados enquanto etapas infelizes numa aprendizagem que acabará por libertar a China do feudalismo e dar oportunidades a quem nunca as teve. Isto apesar de Li não escamotear os efeitos perniciosos de processos como o Grande Salto em Frente ou a Revolução Cultural, e de como destruíram a capacidade produtora e de inovação do país, até chegar Deng Xiaoping (um país, dois sistemas), e a China evoluir para o capitalismo controlado, com os resultados conhecidos. Um processo que muitos chineses que viveram a Revolução têm, de resto, alguma dificuldade em assimilar. E um deles será, precisamente, Li Kunwu.
Se nos dois primeiros volumes de Une vie chinoise o percurso e opções são claros por se basearem na experiência pessoal do autor (embora peça emprestada a dos pais e irmã em diferentes momentos) e, mais do que isso, em memórias de que o próprio se orgulha, no menos conseguido O tempo do dinheiro há um desfasamento notório entre autor e China. Li Kunwu utiliza exemplos de compatriotas que aproveitaram a abertura à iniciativa privada para triunfar ou falhar, mas essa é uma realidade que lhe é estranha, percebe melhor os velhos operários que não aceitam os novos ventos. A tensão evidente neste volume leva até que a obra não resista, e revele as suas costuras, se abra enquanto meta-narrativa. Na génese de Une vie chinoise estará a divulgação em França de novos tipos de banda desenhada, nomeadamente uma abordagem a autores chineses realizada no Festival de Angoulême. De resto a influência do francês Philippe Ôtié como coargumentista (“traduzindo” as ideias de Li em falas para banda desenhada) está na génese de um debate que surge neste último volume, de resto uma particularidade que, do ponto de vista narrativo, o resgata. A dificuldade de Li Kunwu lidar com a nova China faz com que O tempo do dinheiro contenha sequências em que os coautores discutem a obra que estão a criar. Apesar das suas afinidades com a cultura chinesa, Ôtié pretende que Li aborde questões fulcrais para o olhar ocidental sobre a China; como os direitos humanos e a liberdade de expressão, corporizadas, por exemplo, nos incidentes da Praça Tiananmen em 1989. Seguindo claramente a linha oficial, para Li Kunwu essas não são questões importantes, apenas o resultado de ações de uma minoria sem expressão, amplificadas por um ocidente desconfiado e ignorante. De certo modo trata-se de uma progressão lógica, e é estranho que Ôtié não o tenha entendido. Não se trata, como Li defende (para acalmar Ôtié?), de desinteresse político puro ou distância: se a família de Li Kunwu não vacilou na sua fidelidade ao sistema quando sofreu na pele os efeitos da Revolução Cultural, do dogmatismo dos Guardas Vermelhos ou dos campos de “reeducação” (eventos que marcam de forma notável O tempo do partido) porque o faria a propósito de algo que mal extravasou Pequim e (a acreditar em Li) nem chegou à sua cidade de Kunming? O compromisso a que os autores chegam é medíocre e inútil e poderia por em causa toda a obra (não só o último volume) não fossem exemplos bem mais prosaicos que testemunham as mudanças na China sem tanto alarido, como a primeira aula de desenho com modelos (femininos…) nus nas Academias de Belas Artes, o sentimento de perda dos antigos revolucionários, ou a concupiscência das novas gerações em busca de bens de consumo.
Ligando novamente as duas obras são os mesmos chineses em plena orgia consumista cuja ganância choca o pai de Belle Yang quando finalmente regressa à China em Forget Sorrow. Nesse ponto o olhar tradicionalista seria equivalente ao de Li Kunwu, mas esse é o único ponto de contato. Em Forget Sorrow Belle Yang (que vivia em Pequim na altura dos conflitos da Praça Tiananmen) está claramente ao lado dos movimentos dissidentes pró-democracia, e tem dificuldades em entender, quer o sistema chinês, quer o modo como é encarado pelo Ocidente. Os meandros do pragmatismo, em suma. Yang assume-se de resto como existindo entre mundos estranhos em mutação, no sentido em que a sua ida para uma China que não entende resultou da necessidade de escapar a uma relação abusiva nos EUA cujos contornos permanecem obscuros, mas que parecem implicar uma abordagem “tradicionalista” de perseguição e tortura psicológica por parte do ex-namorado. Se Une Vie Chinoise procura dar a conhecer (e louvar) uma dada China, ao realizar Forget Sorrow Belle Yang está a procurar sobretudo encontrar-se, fazendo jus ao seu nome; a China vem por acréscimo. Ao abordar qualquer realidade fazem sempre falta olhares distintos.
Forget Sorrow: An Ancestral Tale, Belle Yang. W. W. Norton. 2010 (18/20).
Une Vie Chinoise 1: Le Temps du Père, Li Kunwu/Philippe Ôtié. Kana, 2009 (17/20).
Une Vie Chinoise 2: Le Temps du Parti, Li Kunwu/ Philippe Ôtié. Kana, 2009 (16/20).
Une Vie Chinoise 3: Le Temps de l’Argent, por Li Kunwu/Philippe Ôtié. Kana, 2009 (14/20).
If it seems as a pet peeve of mine, that’s because indeed it is. I take issue with the recent accolades garnered by “graphic memoirs” that purport to bring a “serious” tone, and a wider audience, to comic books (not using that name, for one). But, and that is the main point, only when I feel these works are overvalued and do not result in quality books. The telltale sign of this phenomenon is when blurbs and reviews focus more on the importance of the subject, or supposed bravery of the author, than on the book itself. This is clearly not the case with Belle Yang’s Forget Sorrow, a great book that does not need to be framed in any other way. However it is useful to consider it together with the more epic (and uneven) three volume Une Vie Chinoise/A Chinese Life by Li Kunwu, given the complementary way in which they approach similar subject matter. Both focus on the history of modern China, and pay homage to the author’s families (especially their respective fathers). However (and with a clear tip of the hat to Maus) Forget Sorrow is a sort of intimate family biography, and, in a way, also an indirect tool of self-discovery of the author following an abusive relationship (“Forget Sorrow” is the translation of Belle Yang’s Chinese name); a biography against autobiography. The massive A Chinese Life is a more clearly autobiographical endeavor (although often borrowing from the memory of others), following the course of Chinese history with a somewhat naive pedagogical tone. The first volume (Le Temps du Père/The Time of the Father) describes the beginnings (and excesses) of the communist revolution, the second (Le Temps du Parti/The Time of the Party) the establishment (and excesses) of the communist party system, the third the rise (and excesses) of the new Chinese-style capitalism (Le Temps de l’Argent/The Time of Money). However, and despite its autobiographical structure, in A Chinese Life the individual is clearly always under control of a collective it is meant to represent (there are many crucial details of Li Kunwu’s personal life that are never discussed). The goal is to view China through the eyes of one “neutral” inhabitant, and when this is not achieved the books loses momentum. On the other hand, Forget Sorrow lives for its individuals, and Belle Yang portrays her father’s different family members with great care, framing their distinct personalities, philosophies and conflicts, mixing the tragic with the prosaic to achieve a rich and credible narrative. The history of China is in this case an outside force to which the characters react as individuals, within their personal belief systems and according to their ultimate goals.
The same loss and sadness that are palpable in Forget Sorrow are viewed in A Chinese Life as necessary steps in creating a more equal society; even when Li Kunwu’s father is imprisoned during the Cultural Revolution the family never loses its faith in the party. In fact Li Kunwu has clearly a hard time understanding the new and unique capitalist China, one of the malaises evident in The Time of Money. The other one has to do with the interesting relationship established between Li and his co-writer, Frenchman Philippe Ôtié, who had the task of adapting Li’s ideas and style (he is by trade an editorial illustrator) into comic book format. Since it deals with modern China Ôtié wanted The Time of Money to also reflect on events such as the activity of dissidents and pro-democracy movements, a conflict represented in the West by the events of Tiannamen Square in 1989. The problem is that Li Kunwu views these events as minor and irrelevant in the grand scheme of things, a Western construction made with the help of a few non-representative Chinese intellectuals that have no real support. This leads to an interesting exchange that has the authors step out of the book to look upon it, and kind of “saves” the final volume from its lack of focus brought upon by the confusing sentiments expressed by Li Kunwu towards the new China. The past shown in the previous volumes seemed crisper in its definition of right and wrong, even when wrong. In that regard the changes in China are best expressed through things such as the awkwardness of the first drawing class using nude models, which Li Kunwu attends.
Again, Belle Yang (who was in Beijing in 1989) is on the opposite side of the Tiannamen Square barricade, and cannot understand the pragmatist position held by the West in its dealings with China when it comes to democracy and human rights. Interestingly both authors meet when they decry the end of traditionalism. Although they might argue what “traditionalism” means (Li Kunwu would add to ancient knowledge and art also the lost beacons of the Revolution), this nostalgia comes through in both books, and its also evident in the artwork, blending calligraphy and traditional Chinese illustration to form drawings that suggest more than they reveal. However the similarities are skin-deep, the thicker brush strokes help Belle Yang with her reflexive dream-like sequences, while Li Kunwu uses his thinner strokes to give an impression of urgency and speed.
In summary, A Chinese Life aims to provide readers with a positive image of one China; Forget Sorrow is part of Belle Yang’s personal journey of self-discovery, another China peeking through the cracks. When considering any reality why not include different gazes?