O que a Luz tem de mais fascinante é que não existe sem a Sombra. Os fogos ardem melhor durante a noite, já se sabe, e não se iluminam a si mesmos, mas ao que os rodeia. Ser luz é ser uma sombra que dá a ver. Os outros, uma paisagem, uma visão do mundo.
Neste sentido, poder-se-ia dizer que Fala Mariam de Lisboa (FML), e a sua pintura, são Luz. Com toda a sombra necessária a um tal modo de existir. A pintora é dona de um trabalho que José Augusto França definiu como “pintura-pintura” e de um percurso persistente e duradouro, porém feito na surdina de quem ilumina o que está para lá de si.
Não é dada a estrelatos, apesar dos 38 anos de carreira, dois deles como bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris, do apoio que teve de nomes como Júlio Pomar e Fernando Calhau, e das três dezenas de exposições individuais e coletivas, a última das quais realizada em 2021, na Galeria Zé dos Bois, com curadoria de Natxo Checa.
Prefere o recato do atelier, da casa, daqueles que ficam por mais marés que passem. E assegura: “Ser pintor é um percurso muito solitário”. Encontramo-nos para conversar sobre Fala Mariam de Lisboa — Pintura 2003-2019, livro editado este ano pela Documenta, no qual são mostrados trabalhos de FML realizados sobre tela e papel, entre 2003 e 2019.
O assunto é “a própria pintura”, a qual, sendo “inesgotável”, combina-se com a vida e faz surgir ideias. A vida, no caso de FML, pautada pelo amor à música, à filosofia, à literatura, às palavras de Marcuse, ou de Tomás Maia, que assina o ensaio inicial do livro.
Há uma dignidade, hoje rara de encontrar, na forma como Fala Mariam vive, cria e fala do seu trabalho
Há uma dignidade, hoje rara de encontrar, na forma como FML vive, cria e fala do seu trabalho. Leva-se a sério.
Tem consciência de que habitar o mundo é poisar sobre ele com respeito, simultaneamente de forma delicada e contundente, procurando manter viva a chama de uma contra-cultura que “era consistente, tinha uma promessa transformadora da noção de consumo, de justiça social”. Como se existir, através de uma pintura ou do café que prepara enquanto conversamos, fosse sempre um gesto sagrado.
Olhando Lisboa, pela janela, recorda o tempo em que a cidade se movia mais devagar, às vezes demasiado devagar para uma adolescente curiosa com o Mundo, em plena década de 1970. Nessa altura, quando “as coisas tinham uma dimensão maior, porque havia pouca coisa significativa”, os dias eram passados em busca de tudo o que tocasse, ainda que levemente, o conceito de modernidade.
Aos 14 anos já vendia programas no Cascais Jazz a troco de bilhetes para os concertos, aos quais assistia acompanhada do eterno companheiro de arte e de vida, já então seu amigo, o jazzman Sei Miguel. Hoje, é com ele que nos guia através de algumas das suas obras.
XPTO, na origem de Vénus, melancolia, a luz das coisas. Uma após outra, poisadas sobre um cavalete ao centro da sala, surgem como pequenos pontos de encontro com a vida, feitos de cores, formas e planos que se sobrepõem. Onde se cruza tudo o que nos faz gente, o que se acumula sob a pele à velocidade do escorrer dos dias e das horas, da dança sincopada das experiências, alegrias, desilusões e procuras que dão forma à vida.
“A minha pintura é um corpo de obra que se vai definindo”, comenta. É precisamente sobre a evolução desse “corpo de obra” que conversamos, ele que vê a sua “forma” mais recente reunida e apresentada em Fala Mariam de Lisboa – Pintura 2003-2019.
Quando e como é que se descobriu pintora?
Fala Mariam de Lisboa: Aos 16 anos, quando absolutamente nada do que educação e família tinham a propor me interessou. Fascinaram-me então algumas – poucas – imagens pintadas, que mandavam em mim. Nitidamente. Quis saber pintar outras.
Que imagens eram essas e em que contexto se cruzou com elas? E o que tinham de tão forte ao ponto de “mandarem em si”?
É difícil dizer melhor aquilo que já disse, mas posso tentar. Talvez dizer-lhe que percebi a História da humanidade através da pintura. Dizer-lhe que a beleza assustadora do Retábulo de Isenheim existe no seu passado, no meu presente e no futuro. A pintura formou-me, ensinou-me a ser melhor, como pintora, claro, mas também como pessoa.
E na pintura procura, encontra ou perde-se?
Sofro. É um ofício demasiado trabalhoso. E também perco-me, sem dúvida, até porque parece a melhor maneira de encontrar-me.
Apesar de sofrer, continua a pintar. Diria que criar é algo inevitável na sua existência?
A minha “existência” acredita justificar-se na criação de um pensamento. É isso a pintura para mim. Sim, vivo atormentada. Mas com paciência. Pois nada disto parece-me inevitável: o decidi.
Como foram escolhidas as obras para esta monografia? Que história é que se quer contar?
Não se quer contar história nenhuma, quer-se mostrar, à boa maneira antiga e cronológica, um período. O de 2003 a 2019 abarca um conseguimento pessoal e técnico que corresponde a uma segunda ou terceira maturidade no curso do meu trabalho. Claro que, por vezes, na escolha das pinturas a reproduzir, influíram fatores meramente mecânicos, como a qualidade fotográfica infelizmente heterogénea do meu arquivo e/ou a indisponibilidade de uma pintura original.
Refere-se ao seu trabalho como figuração abstrata. É uma abstração do que vem de fora, do Mundo, ou do que vem de dentro, da alma?
Do ofício conheço certas técnicas que discriminei, que tornei minhas. Mas sinto que continuo uma tradição que passou pelo Modernismo do século passado, mas que vem de trás, de Mundos bem mais antigos. Este “exterior” de que estou a falar é a própria Pintura, para mim o assunto da máxima intimidade. A alma, mal ou bem, está em tudo que faço; aguente-se!
Quais são esses “mundos bem mais antigos”?
Mundos como este nosso de hoje em dia, mas em que o tempo já trabalhou, deixando-nos aparentes os sulcos artísticos daquilo que foi, escombros ou coisas intactas, o aparentemente acessível e o enigmático. Procuro, sempre procurei aí, boas fontes, busco a pedra de toque, por vezes a que se pôs de lado…
As obras apresentadas no livro parecem mostrar-nos o vislumbre de alguma coisa e escondê-la logo de seguida e nós ficamos ali a olhar, e a olhar, a tentar vê-la outra vez para agarrá-la. É um “jogo” propositado?
Numa tela, para mim, existem vários planos. Estão lá mesmo antes do pintar. Tenho é que os acordar… a todos. A composição é esse pretexto difícil para obter a imagem completa, ou seja, a existência pintada dos planos em simultaneidade e transparência. Um quadro assim pode não ser fácil de perceber logo como um todo. Penso que ainda bem. Favorece a contemplação de tempo indeterminado. Mina o olhar dominador.
É preciso tempo para nos relacionarmos com uma obra?
Eu falei de um tempo indeterminado, de avaliação subjetiva. Mas um tempo, sem dúvida. Digamos: um tempo que “mede” a distância que separa uma Visão… da “medida” da nossa época.
Falou também em simultaneidade e transparência. Procura nos próprios materiais formas de expressá-las?
Os materiais que uso são restritos. Tela, pincéis e tinta acrílica. Sou uma pintora de cavalete. Nesse conforme, lido com quase ilimitada matéria, nada-nada abstrata, mas física até mais não. Precisarei de uma ética do procedimento para que surjam no quadro transparências e simultaneidade. Uma verdadeira negociata, digo-lhe, na qual abstração é somente uma das virtudes essenciais na feitura da imagem pintada. E, depois, na sua apreciação.
Tomás Maia dá o título “Templo da Luz” ao texto inicial. A pintura é, ou tem sido, para si um recinto sagrado?
Sinto simples e vulnerável orgulho no facto de o meu trabalho ter sido alvo do ensaio do Tomás Maia. Esse ensaio, relativamente pequeno, descreve um arco imaginativo tão surpreendente quanto fiel aos meus anseios e modos oficinais nas últimas décadas. O Tomás teve a perspicácia, entre outras, de identificar uma das formas de composição que uso – um dos planos da imagem, claro está – com a mística e artística necessidade de demarcar o que se quer da ordem do sublime.
Na verdade, quando pinto coisas que quase não me pertencem, circunscrevo-as, e sagro-as quase sem querer. Acho, portanto, que a pintura contém, pelo menos, uma equivalência do sagrado. Não a pintura como expressão de grandes ou pequenos egos na turba contemporânea. A turba é sempre contemporânea. Mas a pintura como consequência do Mistério que nos rodeia.
Esse mistério está encerrado na Luz, referência presente em tantos títulos da seleção de obras desta monografia?
Os títulos propõem uma cumplicidade entre o pintor e quem vê o quadro, uma cumplicidade puramente poética. Mas a “sombra universal”, conceito DaVinciano, permite a pintura. Na origem, os pigmentos. E a Luz é a maneira singela e rigorosa de dizer as cores, percecionadas nos seus contrastes e fusões, na absorção ou na projeção, em ondas curtas e ondas longas. A luz, saber essencial, emancipa a pintura da coisa poderosa que é o desenho, saber fundamental.