Chama-se Francisco, mas também poderia chamar-se Frederico. Autor e personagem têm muitos pontos em comum e essa tem sido uma das marcas mais fortes da escrita de Frederico Pedreira. Não porque queria navegar os territórios da autoficção, na qual fidelidade ao vivido é ainda mais forte, mas apenas porque é a partir da biografia que edifica os seus objetos literários, quer sejam poemas, narrativas ou ensaios.
O autor de A Lição do Sonâmbulo sugere até, nesta entrevista ao JL a propósito do seu último romance, Sonata para Surdos, que a memória de certos episódios o remete para outros tempos, outros lugares, mais distantes dos seus, como se recordar abrisse uma porta para outra dimensão.
Em Sonata para Surdos, Frederico Pedreira aproxima-se ainda do que considera ser “um bicho particular”, o que por outras palavras poderia designar por estilo pessoalíssimo e intransmissível. E a encontrar uma definição para essa voz, ela passaria certamente pela confluência, sobreposição e mistura de géneros, num esbatimento cada vez mais acentuado de fronteiras.
Nascido em 1983, Frederico Pedreira estreou-se literariamente com o volume de poemas Breve Passagem pelo Fogo. Na poesia, publicou ainda Doze Passos Atrás, Presa Comum ou A Noite Inteira. Na prosa, revelou-se com os contos Um Bárbaro em Casa, a que se seguiram os romances Fazer de Morto e A Lição do Sonâmbulo, este distinguido com dois prémios europeu de literatura da União Europeia e o Eça de Queiroz / Fundação Millennium Bcp. Com o ensino Uma Aproximação à Estranheza, adaptação da sua tese de doutoramento, foi distinguido com o Prémio INCM/Vasco Graça Moura.
Nos seus últimos livros, as fronteiras entre campos literários – romance, poesia, ensaio – estão cada vez mais esbatidas. É para o texto, qualquer que ele seja, que tudo conflui?
Acho que este livro é um passo nesse sentido. Parece-me que é o primeiro em que sinto ter conseguido uma confluência mais aprimorada entre essas vozes. Isto no sentido em que um grau aprofundado de pensamento e uma aposta estilística dita poética enformam a narrativa e tornam-na o “bicho particular” que ela é.
Cada vez se me torna mais difícil pensar nestas coisas em compartimentos. Vou tentando um grau de perícia como leitor que mais tarde tornará imprecisas ou desnecessárias essas separações no que vou escrevendo.
Essa abordagem significa que se sente mais próximo de um estilo próprio, uma abordagem pessoalíssima, a sua voz?
É mesmo isso. E é a essa voz pessoalíssima que chamo o “bicho particular” que é a minha escrita ou cada livro meu. Continuo a escrever coisas que, mais tarde ou mais cedo, espero resultarem num livro de poemas, num livro de ensaios e assim por diante.
Mas hoje, olhando para trás, parece-me que sempre achei o romance a arte suprema, talvez por terem sido originalmente os romancistas que me suscitaram a vontade de fazer da escrita uma forma de vida. E não me refiro à escrita como modo de ganhar a vida. Mas, retomando a pergunta, creio que é no romance que sou inteiro e falo ou tento falar todas as línguas, por assim dizer.
Outra das marcas fortes do seu trabalho é o cunho autobiográfico, também muito presente em Sonata para Surdos. Não há escrita sem biografia?
No meu caso, não há mesmo. Sou muito adepto da ideia wildiana de que a vida imita a arte. À partida, para um preponente da biografia como trampolim para a escrita, devia ser o contrário. O que acontece, no meu caso, é que de repente surge a ideia para um livro, um modo de estar mais aconchegado à ideia de ensaio, poesia ou romance, e então eu passo a viver em conformidade. É difícil explicar isto.
Mas sem uma ideia, sem algo que salte na poeira repisada da realidade, sem qualquer coisa que me deixe a levitar, por pouco que seja, torna-se difícil subsistir mentalmente. E por isso a vida vai seguindo as pistas da arte numa tentativa de regeneração e recomeço constantes. A biografia é uma efetivação gradual da ideia que me toma de assalto a imaginação.
E que papel desempenha a memória nesse processo? Ao JL já confessou ter “uma memória muito esquisita”…
A memória é a génese de tudo. Gostava muito que Gaspar Simões tivesse razão quando diz na sua biografia de Pessoa que a infância, ou a memória muito atenuada desse paraíso perdido, e se calhar nunca vivido, é o que comandou desde sempre o ímpeto criativo do escritor. Mas talvez a sobriedade da análise de Zenith seja mais acertada nesse aspeto.
Digo que gostava de Gaspar Simões tivesse razão porque, com franqueza, não vejo outro motivo para alguém criar seja o que for se não o de sair de onde está e ingressar num estado sobre-excitado da consciência alimentado pela memória de algo que muito provavelmente nem chegou a ser.
Acontece-me muitas vezes ter saudades do que nunca me aconteceu. A minha memória é esquisita porque parece tirar algum prazer em provocar-me com “sugestões de imortalidade”, na formulação de Wordsworth.
Nessa dinâmica entre o vivido, o recordado e o escrito, como seleciona o elemento biográfico a recriar literariamente? É um processo intuitivo ou planeado?
É absolutamente intuitivo. Há coisas que me cativam de um modo arrebatador e inexplicável no dia-a-dia, mas só porque estabelecem uma ligação com outros tempos, outros lugares às vezes sem referente exato, perdidos no saco sem fundo da biografia. É que, para mim, certas sensações parecem-me mais antigas do que a própria memória, até do que a própria vida.
Não quero soar místico, até porque de misticismos, ritos e cabalas sei pouco ou nada, mas cada vez mais vou sentindo na escrita um modo essencialmente diverso de sentir as coisas, e longe vão os tempos em que a procurava como modo de recapitular, ordenar ou corrigir o mundo em meu proveito.
Dito isto, o elemento biográfico a tratar surge de forma aleatória, ao sabor do vento, e converte-se num elemento situacional que irá filtrar todas as descrições. Essa situação funde o olhar do narrador e o cenário observado num só temperamento provisório.
Em Sonata para Surdos estamos em Veneza com um longo ensaio académico para escrever. No seu caso, esse momento também foi decisivo para o seu futuro percurso?
Francisco é, de certo modo, narrado pela lente baça e um tanto obscura da sua mente, e a tentativa de ele se livrar do peso das palavras a mais no título do seu longo ensaio é mais um gesto no sentido de aclarar a lente da sua perceção das coisas e, portanto, do seu “eu” provisório.
O que lhe interessa tão fortemente na estranheza, nas dificuldades do discurso ou na afasia, tão presente neste romance e no seu doutoramento?
Neste livro, existem algumas coincidências cronológicas com a minha vida, e o momento da escrita da minha tese de doutoramento é uma delas, embora Francisco esteja focado na escrita de um longo ensaio cujo como, porquê e para quê ignoramos. E a natureza pouco precisa desse ensaio é importante para a figura de contornos algo esbatidos ou indecisos que por vezes ele é.
Foi para mim um espanto quando, há muitos anos, li o livro do psicólogo A. R. Luria sobre o seu paciente Zasetsky, que no meu livro se transforma em pseudo-personagem, e comecei a inteirar-me dos primórdios da neuropsicologia. Comove-me a forma como as disfunções cognitivas e comportamentais se manifestam numa espécie de discurso avariado ou quebrado. Comove-me sobretudo a vulnerabilidade de quem assim se tenta exprimir.
É como alguém que está cheio de sede e vai constantemente ao poço com um púcaro furado. Sempre me revi nesse movimento constantemente frustrado que é, em maior ou menor grau, a condição de todos nós. E a estranheza disso está no contraste entre a evidência do nosso corpo, das nossas palavras, e a invisibilidade a que tantas vezes estamos sujeitos.
O outro polo do romance é o Alentejo, onde vive há vários anos. Veneza e Alentejo são extremos que se tocam, geografias carregadas de estereótipos, lugares-comuns, camadas de tinta turística? São também dois lugares para o quais o discurso é impossível ou difícil?
Sem dúvida, são dois autênticos postais, no sentido em que estão já tão carregados de descrições-rótulo que é difícil escapar à autoridade impositiva dessas descrições.
E refiro-me a estes lugares no livro não só pelo facto de ter deles algum conhecimento em nome próprio, mas também por serem mais desafiantes e interessantes de desmontar, uma vez que aquilo que procuro quando falo de determinados países, cidades ou vilas é, acima de tudo, torná-los não-lugares e livrá-los do que é puramente circunstancial.
O que eu procuro é, quando muito, o país-idioma, a cidade-sugestão. Para efeitos narrativos, a mera experiência de “estrangeiro”, com tudo o que o termo comporta, já é suficientemente fértil. Nos casos de Veneza e Alentejo, o discurso concebido como algo que contém a sua própria semente torna-se mais difícil porque existe num ambiente extremamente saturado em termos de representação.
Essas pessoas são marginais aos olhos de Francisco no sentido em que representam, cada um à sua maneira, uma periferia da comunicação ou da expressão a título individual. Ou porque são inábeis em termos expressivos, ou porque encaram obsessivamente a própria ideia de expressão nos seus moldes criativos ou quotidianos, ou porque manifestam, de facto, uma incapacidade cognitiva ou comportamental que lhes arruína as possibilidades de comunicação: se há algo que liga Francisco, Carlo, a surda e a filha, Zasetsky, o velho Silvio e a filha deste, e até Emília, será certamente este aspecto.
Depois, há essa busca de uma verdade provisória da parte de Francisco, que passará por uma tentativa de escavar mais fundo, de abrir corredores de comunicação, ainda que subterrâneos e em risco de desabar, entre os seus medos e os que espreitam do outro lado, no íntimo dos outros.
Talvez cansado da teoria, Francisco, o protagonista do romance, decide sair da teoria do seu longo ensaio e ir ao encontro das pessoas, sobretudo das mais marginais, de Veneza. É uma busca da verdade?
O narrador, por seu turno, convoca constantemente outros escritores, ensaístas, realizadores. Qual a importância deste diálogo para a construção da narrativa?
Isso foi “uma coisa supostamente divertida que nunca mais vou fazer”, para citar a tradução de um título de David Foster Wallace. E cá estou eu a fazer o mesmo. É importante no livro por duas razões: a primeira, mais evidente, é que o protagonista é estudante de literatura, um aspirante a literato, digamos.
A outra, que tem mais a ver comigo, prende-se com uma tentativa de mapear os meus saltos de fé intelectuais e de fazer jus – embora nem sempre – à ideia de “o seu a seu dono”. Tenho dívidas contraídas ao longo do livro que só posso ir pagando às prestações, com brevíssimas tentativas de tributo aos escritores e livros que mais me encantaram.
Tolstoi é um exemplo: a forma como em Anna Karénina são descritas as orelhas de Karénin, o modo como, depois de mil vezes observadas, se destacam de súbito aos olhos da mulher em todo o seu aspeto grotesco… este aspeto motivou o meu diálogo entre a transformação fisiológica de Francisco e o seu tormento interior. Claro que essa dívida tinha de ser reconhecida.
O dialogo com a Bíblia também é particularmente forte neste romance. Qual a sua relação com o texto sagrado?
Na Bíblia, fui e continuo a ser um turista interessado e às vezes encantado. É o poder encantatório das suas repetições e tautologias que me fascina. Há momentos em que cada versículo parece um vitral de uma mesma janela temperada por uma luz ligeiramente desigual.
E isso, para o menos cético, poderá ser visto como um texto e uma verdade especialmente conseguidos, como eu acredito que são. Mas na Bíblia interessa-me acima de tudo o temperamento de certos episódios, que irá contaminar as imagens e o motivo metafórico de certos passos do meu livro.
E como ler o título Sonata para Surdos?
Parece-me que é um pouco como o título A Lição do Sonâmbulo. Ou seja, é uma tentativa da minha parte de encapsular uma tese ampla e experimental em três ou quatro palavras. Tanto num caso como no outro, há uma tentativa de chegar a alguém, seja através de uma sonata ou de uma lição, e de se esbarrar invariavelmente num elemento obstinadamente negativo ou pouco cooperante, seja o surdo ou o sonâmbulo.
A haver uma interpretação para o título, avançaria com a noção de que há certas coisas ditas de maneira especial que só poderão ser compreendidas através de uma surdez (ou cegueira) igualmente especial.
Além do Prémio da União Europeia para a Literatura que recebeu com A Lição do Sonâmbulo, tem sido traduzido para várias línguas. Tem encontrado leituras novas? Como tem sido essa experiência?
É muito esquisito dizerem-me na Bulgária ou na Macedónia que sentiram uma ligação muito forte com esse meu livro.
Estou a falar do quintal da casa dos meus avós em Benfica, o molde da minha infância e início da adolescência, e de repente estou em Budapeste a ouvir não só esse quintal dito em húngaro, mas também toda essa gente da minha memória traduzida para uma língua que ignoro por completo, vertida em sensibilidades tão circunstancialmente distantes da minha aos dez anos.
A única esperança que posso ter é que isso se deva mais à força da linguagem e menos ao elemento referencial da narrativa, como nomes de marcas, objetos, lugares ou experiências de outras décadas. E, sim, tenho sido surpreendido por um tipo de interpretações muito militantes, pensadas e sentidas que raras vezes encontrei por cá.