Numa pequena nota para o volume em que, em 1983, reuni, pela segunda vez, toda a minha poesia, escrevi o seguinte: «(…) cedo à insistência do editor para que, de acordo com as características da colecção, procure condensar nesta exígua badana uma espécie de autobiogra.a. Está nos meus planos (mas irá alguma vez além deles?) biografar e criticar, um dia, os poemas que publico.» Penso que a obra poética dum autor é, de algum modo, a sua autobiogra.a, ou o seu diário. Porém, grande parte do que nos poemas se diz furta-se a assumir um carácter meramente informativo, mesmo que, nos casos mais extremos estou a pensar numa Irene Lisboa e, em particular, no seu primeiro livro de poemas, Um Dia e Outro Dia (diário de uma mulher), possa até ser esse o registo que o poeta reivindica.
Em muitos dos melhores é, indubitavelmente, das «puras verdades já por mim passadas» que se fala, o que não quer dizer que tais verdades devam ser tomadas à letra, ainda mais quando, ao imaginar- se «ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra», o poeta o faz sob o nome e na personagem de outro, esse sim, que teria carro e carta de condução.
Já em algumas ocasiões procu-rei cumprir aquela promessa de 1983, por exemplo ao prefaciar a mais recente recolha de toda a minha poesia, em 1999, ou até em comentários pontuais acerca de alguns poemas, poemas eles próprios, como aconteceu com «À entrada» e «A arte dos ver-sos», de As Leis do Caos.
Isto para dizer que, solicitado a autobiografar-me, talvez possa resolver a di.culdade de o fazer, num espaço não muito extenso, tentando reler um pouco da mi-nha vida na .cção e .xação que, nos versos, dela fui fazendo.
No livro Crateras, dos três que publiquei depois da reunião de 99 o mais mal e desatentamente lido (em termos públicos, é claro), há uma série de três poemas, merecedora de estudo noutras paragens, «Morada», «Na língua portuguesa» e «Antes da língua», que procura reconstituir as mais antigas imagens entradas na minha vida e agora difusamente revistas com a memória. Um deles começa: «Anterior à língua o tecto/ fala E o/ pequeno corpo há-de molhar// no lago de palavras a/ alta penumbra da restrita/ infância”; outro termina assim: «Para/ buscar a existência muda/ a língua recuou/ ao quarto anterior onde/ vi a penumbra». Aí, no reino puro da imagem, quando a memória não podia ainda .xar-se em palavras, começa a minha (auto)biogra.a. E são de novo esses os tempos evocados nas linhas .nais do último poema incluído em Repercus-são: «cenário da memória/ por começar quando nomes houver/ que possam designar/ as caras sobre a cara debruçadas”.
Infância, adolescência, tornam-se, nos livros recentes, mais visíveis, e também o que veio depois, mesmo o passado mais próximo: muitos destes poemas precisam, sem dúvida, menos de biogra.a, na medida em que se assumem eles próprios como biogra.a, uma biogra.a talvez mais sincopada do que cifrada.
Não é necessário esclarecer o evidente, quer se trate d’«A colher», das fontes d’«A alegria», da música ouvida «na escuridão dos quartos repas-sados/ de secura» ou do «som ouvido nos verões/ quando a luz sobre a pele/ se transformava em água”. Porém, já não o teria sido também em 1969, ano da publicação d’As Aves, o livro em 1967 escrito em Mafra, num Outono que co-meçara por prolongar a estação inusitadamente calmosa do soneto de Sá de Miranda e .ndara com o «violento/ som gasto e demorado com que as armas se despedem agora do Outono».
Mas também não faz falta esclarecer o não evidente, pelo que a biogra.a dos poemas, ou do autor segundo os seus poemas, será sempre, no fundo, de uma total inutilidade. Qualquer esclarecimento funcio-nará como um obscurecimento, ou, porventura com maior exactidão, como um passo para o conhecimento do lago escuro (de Pessanha), que não deixará nunca de o ser. Neste sentido, só existe mesmo o evidente, ou, quando muito, o evidente dinamitado, que, lem-bro-me agora, esteve para ser o título de um dos livros da Luiza Neto Jorge.
Mantenhamos, contudo, a fanta-sia de que através dos poemas é possível fabricar uma biogra.a do autor.
Olhando para os textos mais an- tigos, que não falam da existência mais antiga, só bem mais tarde tema de poesia, mas sim do seu próprio tempo e do curso tumultuoso do sangue no corpo, penso que poderiam todos agrupar-se sob o título de um deles, «O país e o corpo», escrito em circunstâncias que descrevi no referido prefácio aos Poemas Reunidos.
Na década de 60 a poesia de quase todos nós teve de olhar de frente «a doença do real», expressão que já utilizei no pequeno texto de 83; e a minha geração pagou o preço de ter tido «vinte anos num país envenenado pela repressão e pela guerra», como também escrevi. A palavra esperança procurava, é certo, romper por entre a nuvem do tempo, es-combros, escassez. E tudo era remetido para o mesmo lugar num outro tempo (este?), que se imaginava livre, como en-tão só era o pensamento, a que nenhum machado poderia cor-tar a raiz. A poesia procurava, com o menor grau de retórica possível, identi.car-se com esse sentimento do futuro, na verdade não muito mais que um sentimento.
Em 1967 procurei exprimi-lo no primeiro poema de Escas-sez: «Este cantar dos anos de pobreza/ diferente da vida e tão diverso/ do poderoso som da esperança// por entre os dentes vis de que se nutre/ a sua boca/ sopra da a.ição a turva música// Este cantar dos anos que a mudança/ do canto fez diverso da esperança/ é um canto de esperança enquanto canta”. A esperança teve, sete anos depois, um breve momento de concretização absoluta, em que o «som da vida» pôde coincidir com a «voz da poesia» («1974»): «O que fora o oculto som da vida/ amado em /papéis surdos/ silenciosos jornais/ é o som duma voz/ a cinza gera a prete-rida/ voz da poesia». Passados mais três anos, era já forçoso registar a progressiva descoincidência («1977»): «Aonde vão as vozes que vazaram/ as pupilas extintas do ouvido/ silenciosas esferas tantos anos/ paradas? E a terra que rodara/ sob a multidão clara por que pára/ entre os signos dum tempo mal extinto?» Londres, 1980, mas não como exílio, alternando a sua prima-vera com a primavera de Lis-boa: «Tanto quanto é irregular ou excessiva, ora negando ora exagerando a sua imagem, a primavera de Lisboa, assim em Londres reen-contro o .lme límpido da mudança do tempo, o transitório aparentemente eterno.» Cidades, reais (Veneza, Liverpool, Berlim, novamente Londres), ou irreais (Bizâncio, e novamente Londres «Unreal city»: «Cidade do crepúsculo parece/ ter morrido no teu um outro céu/ que pesa como um dia sempre extinto»).
Mesmo se não esquecidas, as grandes ausências estavam então arrumadas na suas épocas de.-nitivas: as de dentro da família, velhas mortes anteriores à minha idade adulta, e outra, a de quem «nesse vulcão por .m/ lançara a sua vida/ e a lava decerto já a tinha inundado e a// boca que falava certamente queimado/ em corpo pelo calor da morte/ tão tentado” como, num poema de Órgão de Luzes, ousei, a certa altura, sob o signo de Empédocles e de Hölderlin, narrar o ocorrido em meados de Fevereiro de 1964.
Uma vida contém, em geral, vários milhares de dias, cheios de acontecimentos importantes (pelo menos para quem os vive, provavelmente). «Não faças versos sobre acontecimentos», advertia (dirigindo-se a si mesmo?) Drummond, ele que não fez outra coisa na vida. Os acontecimentos transformam-se em actos, em cenas. Um «órgão de luzes» desenha o modo como tudo isso pode ser mostrado, seleccionado, iluminado. Ao longo de quase 20 anos, a minha vida esteve perto desse mundo, por vezes dentro dele. Um actor diz num trapézio o seu monólogo (Cocteau); uma actriz chora por si própria ao descrever o massacre de Sebastian em Cabeza de Lobo (Tennessee Williams). É desses lugares onde a representação os leva que vão em breve, lite-ralmente, despenhar-se, como todos os que se lhes seguirão.
A morte, tão igual a esse mar cuja proximidade «determinou um modo de viver», sempre andou por aí, percutindo, como o furor do sangue no corpo nu do início. Entender a relação dos dois nadas, o anterior e o posterior, com o tempo da vida, dos mortos com os vivos, da vida com o tempo, é isso o que resta.
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