Participei entre 2021 e 2022 num projeto chamado Encontros Transparentes, em que os utentes dos lares de idosos do concelho onde vivo foram desenhados pela artista plástica e ilustradora Renata Bueno e fotografados por mim, tendo resultado num livro apresentado há uns dias. A ideia era minimizar o isolamento agravado pela pandemia.
No prefácio que escrevi para este livro, parti de um texto que Cícero assinou aos 84 anos, em que defende a velhice de uma forma demasiado otimista, enaltecendo-a em todos os seus aspetos, chegando a afirmar de forma demagógica que o problema não é a velhice é a falta de saúde. Defendeu ainda que a impossibilidade ou dificuldade de desfrutar uma série de prazeres associados à juventude é algo desejável: o envelhecimento leva a uma vida mais frugal e virtuosa. Creio que todas as etapas da vida têm defeitos e virtudes e seria pouco sagaz defender em absoluto uma delas em detrimento de outras, nenhuma delas configura um período perfeito e idílico. Se a juventude tem à sua frente a incerteza do futuro, a esperança e a ambição, a velhice tem a consumação do passado, com todas as alegrias e dores, com a tragédia e a felicidade. Em Jesus Cristo bebia cerveja escrevi o seguinte:
“Quando acordaram de manhã, na mesma cama, ela disse-lhe que queria ter um passado com ele. Não era um futuro, que é uma coisa incerta, mas um passado, que é isso que têm dois velhos depois de passarem uma vida juntos. Quando disse que queria ter um passado com alguém, queria dizer tudo. Não desejava uma incerteza, mas a História, a verdade.”
Um velho não está em determinado lugar, está em todos os lugares por onde passou, nos copos de vinho que ergueu, nos arrependimentos, no trabalho, nos amores, nos familiares, nos amigos, enfim, em todo o seu passado. Como escrevi num outro livro, nós somos feitos de histórias, não é de a-dê-enes e códigos genéticos, nem de carne e músculos e pele e cérebros. É de histórias. E uma história sem final não é bem uma história, e este é o maior elogio que se pode fazer à velhice e à proximidade da morte: há nela um caminho percorrido até ao horizonte, uma taça que foi bebida até à última gota.
É verdade que há uma cada vez maior e dolorosa decadência do corpo, mas uma pessoa não se gasta ou se desarranja, uma pessoa troca-se, e isso faz toda a diferença: não é uma perda somente, é uma entrega de nós mesmos que se instala e cresce em tudo o que amamos, resultando na sentença camoniana “transforma-se o amador na cousa amada”, e assim vamos adquirindo a transparência absoluta da velhice. Se as valências do corpo vão migrando para o objeto do nosso amor, a verdade é que a alma também.
Tudo isto não suaviza ou minimiza o facto de os rostos ficarem assimétricos, de serem escavados pelas rugas, de a voz tremer, tal como as mãos, e se há algo que não é evidentemente bom em tudo isto, há no entanto um encontro com a beleza. Em O vício dos livros, sobre este tema, escrevi: “Há uma luz que intuímos nestes momentos, uma ‘luz por dentro’, tal como Mário Quintana titulou um dos seus textos, do livro Caderno H: ‘Mas há uma beleza interior, de dentro para fora, a transluzir de certas avozinhas trêmulas, de certos velhos nodosos e graves como troncos. De que será ela feita, que nem notamos como a erosão dos anos os terá deformado. Deviam ser caricaturas mas não fazem rir, uns aleijões mas não causam pena. (…) Eu gostaria de acreditar que essa inexplicável beleza dos velhos talvez fosse uma prova da existência da alma. Suspeito que essa ‘luz por dentro’ sejam histórias e que a inexplicável beleza dos velhos seja precisamente a prova da existência de uma vida.”