Após o encontro, por via remota, com o docente da Universidade de Stanford, nos EUA, vem à ideia o trecho da canção de José Mário Branco “o que eu andei pra aqui chegar”. Isto porque o investigador defende que nos tornamos aquilo que somos por conta de uma multiplicidade de fatores que não controlamos, da herança genética e hormonal às interações com o ambiente, passando pela história de vida. Ao longo da entrevista, Robert M. Sapolsky expôs ideias provocadoras e controversas sobre responsabilidade, liberdade e justiça, lembrando o que a Ciência tem feito por nós, humanos, que define como máquinas biológicas dotadas de intenção.
Nascido em Brooklyn, Nova Iorque, numa família de judeus ortodoxos, há 67 anos, e a viver em São Francisco, o autor de Determinado – Uma Ciência da Vida sem Livre-Arbítrio (Temas e Debates, 520 págs., €24,90), best-seller do The New York Times, confessa que o seu mais recente livro lhe levou cerca de cinco anos a escrever e desabafa, com uma nota de ceticismo: “Depois deste, acho que não vou escrever mais nada.” Na obra apresenta inúmeros estudos, com humor à mistura, desafiando-nos a questionar o que tomamos por certo, como as noções de bom e de mau, de certo e de errado, apelando ainda à nossa capacidade para julgar menos e pôr de lado alguns mitos que persistem na sociedade.
O que é o livre-arbítrio e porque entende que ele não passa de uma ilusão?
A melhor forma de compreender isto é observar o que a maioria das pessoas faz quando julga exercer a sua liberdade de escolha. A cada momento, forma uma intenção e age em conformidade. Pode ser tomar um café ou um chá, alvejar alguém ou não o fazer. Está consciente disso e das possíveis consequências e admite que poderia decidir outra coisa. O sistema jurídico assenta nisso: quem comete um crime sabia o que estava a fazer, tinha alternativas; então é culpado, pois agiu livremente. Do ponto de vista da neurobiologia, o que conta é perceber o que levou a pessoa a ter aquela intenção e não outra e que a torna quem é. Tudo o que somos resulta da nossa história biológica e das interações com o ambiente, duas variáveis que dependem da sorte, sobre a qual não temos qualquer controlo.
Concluiu, na adolescência, que não escapamos ao nosso destino. O que esteve na base dessa descoberta?
Cresci num ambiente religioso. Aos 14 anos, para mim, não fazia sentido ser responsabilizado e castigado por Deus, o criador do Universo que controlava tudo. Uma noite, acordei e pensei: “Deus não existe.” Assim sendo, também não havia livre-arbítrio nem um propósito e o Universo era um lugar grande, vazio e diferente. Continuo a pensar assim.
Como o filósofo Camus, que falava do absurdo da existência?
[Risos.] Mas não estamos condenados a ser livres. Somos máquinas biológicas determinadas por leis e circunstâncias naturais. Os acontecimentos da vida alteram a regulação genética nos próximos cinco minutos ou nos próximos 50 anos. Não se trata de mudar a Natureza ou a sequência do ADN, mas de ver uma característica epigenética transmitida entre gerações. Assim, a criança cuja mãe teve depressão na gravidez terá mais propensão para deprimir na idade adulta e a dieta que tiver no início da vida vai moldar o apetite e a forma como o corpo armazena calorias no resto da sua vida, bem como o funcionamento cerebral.
Ainda assim, porque não somos donos das nossas escolhas?
Os estudos em ratinhos mostram que o perfil das novas gerações tanto pode dever-se ao efeito epigenético que altera a regulação do ADN da descendência como ao comportamento da mãe face aos filhos. Se a cria tiver sorte, a mãe vai dedicar tempo a cuidar dela e a dar-lhe mimo e, desse modo, alterar a regulação dos seus genes. As condições favoráveis ao crescimento do bebé levam a que, em adulto, lide melhor com o stresse e tenha níveis mais baixos de hormonas associadas a ele (adrenalina, cortisol, etc.). Ao tornar-se uma mãe cuidadora e potenciar o aparecimento de novos adultos cuidadores, essa característica será transmitida pela via comportamental e não genética.
Se essa característica for um traço de personalidade, ou um trauma, as pessoas tendem a replicá-los?
Começa a perceber-se que, tal como a experiência pode causar alterações epigenéticas nos genes, a experiência subsequente também pode revertê-las. Caso não se faça nada, podem perpetuar-se vida fora e passar às gerações seguintes. Nos casos de depressão, ansiedade ou abuso de substâncias, por exemplo, aumenta a probabilidade de, na vida adulta, vir a sofrer destes problemas. O trauma precoce altera os mecanismos cerebrais do processamento da recompensa, aumentando a tendência para a adição e outros efeitos. Se a criança tiver sorte e puder ter acesso a um apoio social ou a uma boa estrutura familiar, não é certo que desenvolva perturbações do humor mais tarde. Ou seja, a maioria destas alterações pode reverter-se. Há esperança.
Como se sabe quando é que essa reversão pode acontecer?
Quanto mais tempo se esperar para intervir, mais complicado será reverter uma alteração epigenética no sistema. Não se deve esperar que uma pessoa faça 30 anos para tentar compreender o seu trauma de infância. Se crescer em ambientes onde há pobreza e a tentativa de reverter os efeitos psicológicos for feita aos 5 anos, é preferível.
Pode explicar como se integram o determinismo e a imprevisibilidade do Universo?
Há alguma confusão sobre isso. De um ponto de vista intuitivo, as duas dimensões estão ligadas. Se não conseguimos prever o que vai acontecer, somos levados a crer que podia ter acontecido de outra forma e, nessa medida, não foi determinado. Porém, é preciso perceber como é que alguém vai tornar-se a pessoa que é, com uma dada intenção. Se pudesse recuar ao minuto seguinte ao Big Bang e ver onde estava cada átomo no Universo, seria capaz de prever se a pessoa tomava chá ou café e o que se seguiria. Mas a resposta não é previsível por conta da aleatoriedade, a base do Universo. O futuro não está determinado devido a eventos caóticos não lineares. Não é possível prever com precisão o que vai acontecer, pela imprevisibilidade incorporada no sistema. Também não se pode afirmar que aconteceu sem motivo. Só quando acontece é que se consegue ver, mas não surge por magia.
Quais as vantagens e desvantagens de conceber a vida sem liberdade de escolha?
Na realidade, não há desvantagens, mas, a existir alguma, ocorre-me o “ai, meu Deus, as pessoas vão andar à solta, perder o controlo e cometer crimes”. Contudo, há muita literatura científica a confirmar que, religiosas ou não, as pessoas não enlouquecem. O lema “se Deus não existe, tudo é permitido”, citado por uma das personagens do romance de Dostoiévski [Os Irmãos Karamázov], não se aplica e a sociedade não se desmorona.
Porém, não deixa de haver crimes. Quem os comete merece castigo?
Há pessoas violentas que causam danos, mas não podemos culpá-las. Imagine um carro com travões avariados: se continuar a circular, pode causar acidentes e mortes. Imagina-se a dar um sermão ao veículo por estar sem travões? Ou a bater no tejadilho com um martelo, castigando-o pela sua perigosidade? Não. A solução é conter o carro e proteger a sociedade de indivíduos perigosos, como do carro sem travões: se descobrir o que pode ser feito para torná-lo seguro, não faz sentido restringir o carro. Ou o indivíduo.
Nesse caso, qual é o papel da Justiça?
O sistema de justiça criminal não faz sentido. É preciso medidas contentoras para proteger as pessoas, bem como estudos que permitam descobrir uma solução segura e explicar porque é que algumas pessoas crescem violentas ou os seus pais são abusadores. Isto implica acabar com noções medievais brutais e primitivas de que aquela pessoa merece a paga por algo que fez.
Na lógica do olho por olho, dente por dente. É isso que quer dizer?
Exatamente. Se pensarmos em pessoas perigosas, parece difícil conceber a ideia de que não têm livre-arbítrio, mas tal acontece numa base diária. Veja o caso de um piloto de avião que é contratado por uma companhia e se dá conta de que tem uma alergia respiratória: na primavera, precisa de tomar um anti-histamínico para secar os seios nasais, mas que o deixa sonolento. Sem ter controlo sobre o seu sistema imunitário ou a resposta alérgica, a regra é não voar nessas condições. Está fora de questão pensar que pecou ou deve ser punido!
Se não temos liberdade de escolha plena, não há lugar para evoluir nem solução para os males do mundo?
Quando eu era criança, Portugal tinha um regime fascista. Lembro-me também de, nessa altura, existirem supremacistas brancos com suásticas tatuadas que agora são ex-supremacistas brancos. Portanto, não podemos afirmar: “Ah, como não existe livre-arbítrio, não vale a pena tentar nada para mudar, será o que for.” Mudamos, não porque escolhemos, mas porque algo no ambiente nos faz mudar. A forma como isso se manifesta depende de quem nos tornámos e remonta ao tempo em que éramos óvulos fecundados.
Como encara os atributos e as preferências pessoais? E a meritocracia, já agora?
É o outro lado da moeda. No caso da meritocracia, a questão é mais subtil. Quem se esforça e se torna, por exemplo, um bom neurocirurgião, fê-lo por ter um córtex pré-frontal que lhe permitiu a autodisciplina para passar uma década a estudar, renunciando a distrações. Tal como a culpa e o castigo, o elogio e a recompensa não fazem sentido. Quando me interpelam sobre a questão do merecimento ou da recompensa numa palestra na universidade, costumo dizer que se estão ali sentados, são pessoas com sorte, têm de estar gratos por terem tomado uma refeição, não serem mendigos nem acumularem empregos, e por lhes darem condições para desenvolverem competências intelectuais.
Como imagina uma sociedade pautada por aquilo que defende?
Devemos à Ciência moderna o facto de sabermos que uma criança com dislexia confunde as letras do alfabeto porque a cablagem do seu córtex é diferente e não porque é preguiçosa, burra ou desmotivada. Ou que pessoas obesas que querem perder peso e fazem dieta mas depois comem chocolate, não é por culpa delas, mas pelo seu funcionamento cerebral, entre outros fatores. Ninguém merece ser tratado melhor ou pior por coisas que não controla. Há dois ou três séculos, as maleitas do corpo e da mente eram atribuídas à alma ou à obra de Satanás, mas hoje não é assim. Penso isto desde jovem, embora continue a ser um desafio intelectual gigante.
É curioso dizer isso na América, onde se proclama o livre-arbítrio. Como lida com a sua existência, abdicando dessa noção?
Não sei [Pausa]. É difícil responder. Talvez deva interrogar-me sobre o propósito da vida ou onde fica essa caverna existencial em que se pode cair. Ou tentar encontrar uma saída para o sofrimento e a dor. Quando dou por mim a detestar Donald Trump – também podia ser Putin, Bolsonaro ou Netanyahu –, paro e penso: “Espera um segundo e talvez compreendas como é que ele se tornou um ser humano assim.” Mas basta ouvi-lo falar sobre os imigrantes ou algo do género para voltar a odiá-lo e ter de passar pelo processo outra vez. Reconheço que nem sempre ajo de acordo com aquilo que defendo, mas faço o que posso. São precisos séculos para mudar mentalidades.