O ensaio A Era do Vazio, publicado em 1983, tornou-se uma espécie de clássico instantâneo, obra fundamental do pensamento da segunda metade do século XX. Em 2021, continuando a debruçar-se sobre o individualismo contemporâneo, Gilles Lipovetsky publicou A Sagração da Autenticidade – de que falou na conferência que no final de março deu na Universidade Católica, em Lisboa, assinalando os 50 anos da sua Faculdade de Ciências Humanas. Aos 78 anos, o filósofo francês continua a ler o presente e a tentar perscrutar o futuro – admitindo que o otimismo, hoje, é “difícil”, mas garantindo também que não cede ao desespero e que tem fé no génio da Humanidade.
Habermas dizia que a modernidade é “um projeto inacabado”. Lipovetsky falou muito em pós-modernidade, conceito que se ouve cada vez menos, e hipermodernidade. Mas concorda com o filósofo alemão?
A expressão “pós-modernidade” ficou muito datada, é verdade. E eu contribuí para popularizá-la falando do individualismo pós-moderno. Creio que era uma análise correta, que procurava demonstrar que tínhamos entrado numa nova etapa para a ideia de “indivíduo”. Os factos, aliás, não pararam de mostrar que estava certa. Hoje, as redes sociais, a cultura das selfies, tudo aponta nessa direção… Mas, na verdade, dizer “pós-modernidade” não era uma boa fórmula, porque dava a entender que a modernidade tinha morrido e que algo diferente vinha a seguir. E ela não estava morta, não havia um “pós”. Já quando falo em hipermodernidade estou a dizer que há uma radicalização dos próprios princípios da modernidade.
Ainda estamos, pois, no caminho que começou na época das Luzes…
Estamos no prolongamento desse caminho, e também numa situação de rutura. A base vem do Iluminismo e da crença na Ciência. Continuamos aí, sim. Durante a pandemia da Covid-19, a grande esperança era a descoberta de uma vacina, a fé na Ciência, como postulavam os homens das Luzes. Mas estamos, também, num contexto de rutura, porque esses homens modernos do Iluminismo eram muito otimistas. Pensavam que a história da modernidade ia sempre em direção a coisas melhores, aquilo a que chamamos “progresso”. Agora, esse progresso parece estar avariado… Não é uma avaria da Ciência ou das tecnologias, mas simplesmente a consciência de que essa mesma Ciência pode levar a desastres. O aquecimento global é um bom exemplo, e é o grande problema dos nossos tempos. Foi a técnica, a ação humana, que o provocou. Ou seja: percebemos que o mundo moderno nos traz bem-estar mas também calamidades, grandes inundações, incêndios… É um “progresso” que mete medo. Eu continuo a ser um “moderno”, a acreditar na inteligência humana, na razão, na Ciência. Vejo os desastres, sim, mas não encontro uma solução melhor do que o caminho que nos levou até aí.
Publicou A Era do Vazio em 1983. Uns anos depois, a revolução digital, a internet e a ligação de todos numa rede gigante, mudou tudo. Obrigou-o a mudar o modo de olhar a Humanidade?
Isso acentuou algumas das coisas de que falava n’A Era do Vazio. As democracias passaram a sofrer de um mal novo, que ainda não era muito claro quando escrevi esse livro: a desconfiança. Os cidadãos perderam a confiança nas suas instituições democráticas. Na Era do Vazio dizia que as pessoas tinham perdido a fé nas grandes ideologias, mas depois deu-se outro passo: muitas pessoas passaram a detestar os partidos, os políticos… Isso alimentou o populismo.
A internet teve um papel importante aí…
Sim, favoreceu esse ambiente. A cultura digital não foi muito boa para vocês, jornalistas… As pessoas já não leem muito a imprensa, e isso ainda vai piorar. Passaram a informar-se na net, mas cada vez mais dentro das suas bolhas. A imprensa tinha, e tem, a obrigação de dar a palavra a todos, ela abre a informação; e a web também pode possibilitar essa abertura, é verdade, mas para a maior parte das pessoas é uma ferramenta que lhes permite pesquisar só aquilo que confirma as suas opiniões, as suas crenças. E se procuram, encontram. Com muitas fake news pelo meio, claro. Trump ganhou eleições mentindo. O Brexit aconteceu depois de uma campanha cheia de mentiras factuais, promovidas por Boris Johnson. A educação na era da internet exige uma reflexão profunda. O que significa, hoje, “ensinar”? É preciso ensinar os jovens a servirem-se destas ferramentas. E isso não é uma questão técnica, é cultural. Da parte tecnológica já eles sabem muito… A escola tem uma grande responsabilidade, apostando na educação sobre os media, a internet, a saúde, a ecologia… São esses os desafios do futuro.
Vivemos, hoje, com uma sensação de fim iminente. A ameaça climática, a ideia do capitalismo em crise… Pensa-se na sobrevivência da Humanidade como nunca antes. Como olha para isso?
Sim, isso não é fake news. E a crise climática é a grande questão deste século. Se alguns cenários se confirmarem, será terrível. Imaginar um aquecimento de dois graus é assustador, quase apocalíptico. Haverá milhões de migrantes climáticos, fugindo de secas extremas, da escassez de água… Quem os vai receber? Como vão viver? Onde?
O capitalismo global pode trazer soluções para isso?
Espero que sim. Mas com a participação, a direção, do Estado. O mercado tem virtudes, é muito eficaz, mas não lhe podemos exigir demasiado… Não está na sua natureza ser virtuoso. O Estado não é tão eficaz, mas devemos esperar que seja mais virtuoso. Sem ele, só sobra uma fé naïf nos mercados. Sem regulação, o que impede uma empresa de poluir mais e mais? São precisas leis. E a melhor regulação, para a lógica capitalista, é impor taxas, impostos. Aí tocamos diretamente no assunto que mais lhe importa, o dinheiro: se emitirem mais CO2 vão ter de pagar mais! O mais importante é, pois, a vontade política.
Mas este capitalismo global continua baseado numa ideia de crescimento infinito, uma espécie de utopia… Está de acordo com o seu compatriota Serge Latouche, um economista que defende o decrescimento como solução?
Não, não estou de acordo com ele. Conheço o Serge, até participei num debate com ele na Madeira! É muito simpático, mas não concordo com ele. Pondo coisas complexas duma forma muito simples: para solucionar o problema climático é preciso um enorme esforço financeiro, e como vamos fazê-lo sem crescimento? Alguns ecologistas têm ideias utópicas: acham que são os consumidores que, diminuindo os consumos, vão resolver os problemas. Greta Thunberg critica as viagens de avião, acha que devemos só andar de bicicleta, que temos de comer só coisas da nossa horta… Acho que tudo isso é uma ilusão grave. É verdade que a luta contra a desregulação do clima implica uma sobriedade nos níveis de consumo, mas isso nunca será suficiente! O que é preciso é mudar os modos de produção, e para isso, lamento, é necessário financiamento…
Mas o crescimento infinito não é também uma grande ilusão?
Acho que esse é um debate hiperteórico. Conheço bem essa argumentação: não há crescimento infinito num mundo finito. De acordo, mas desconfio dessas fórmulas absolutas… Quem nos pode garantir que o espírito é finito? E se o espírito não é finito, o nosso mundo também não é… O ser humano inventa, e quais são os limites da invenção? O génio humano não tem parado de tornar possível o que parecia impossível. Acha que os gregos pensavam que era possível irmos à Lua? Acha que na Idade Média acreditavam que era possível falar em direto de Paris para Lisboa, vendo as nossas imagens a três mil quilómetros de distância? E é possível.
Por falar em sonhos que parecem impossíveis… Há quem diga que alguns manifestantes, que estão agora nas ruas de França contra a nova lei das reformas, são os que fizeram o Maio de 68, mas cinquenta e tal anos mais velhos. O que lhe parece?
Talvez… Os contextos são muito diferentes, mas pode haver uma ligação. Na recusa da mudança na idade para a reforma há a ideia de que devemos viver bem a nossa vida. E isso é muito soixante huitard! Há algo de hedonista neste combate. E eu até compreendo isso… Mas não consigo partilhar totalmente essas reivindicações. O problema é que vivemos cada vez mais… Há o princípio da realidade. Como vamos pagar? E quem paga? Todos queremos bons hospitais; e há mais doenças no envelhecimento, há um preço que é preciso pagar, e é caro. No fundo, acho que Macron tem razão ‒ mas talvez tenha sido inábil, isso é outra questão. Agora ele acredita no esvaziamento destas manifestações. Aposta que, depois de aprovada a lei, as greves e a revolta nas ruas vão acabar por desaparecer, por já não poderem mudar nada.
Estava em Paris, com 24 anos, no Maio de 68. Sonhou muito?
Não. Eu tinha uma formação marxista e não via ali uma revolução possível, porque não havia nenhum partido revolucionário em ação. Enganei-me… Porque houve mesmo uma revolução, mas não aconteceu em maio de 1968, aconteceu na década seguinte, nos anos 70. Foi uma revolução cultural que mudou completamente muitas coisas: a sexualidade, as relações familiares, a educação… As pessoas mudaram mesmo. Ou seja: a importância do Maio de 68 vê-se nas mudanças dos anos 70.
Mas esteve lá, nas ruas?
Sim, claro, estudava na Sorbonne! Passávamos os dias em discussões intermináveis, achávamos que estávamos a inventar um outro mundo.
Sempre sonhou um pouco…
Mmmh… Não. Quando vivemos um acontecimento destes por dentro, estamos demasiado próximos, é tudo muito confuso. Eu não acreditei numa mudança, numa sublevação. Por isso, também não fiquei desiludido… Mas participei em tudo, claro, de uma maneira um bocado cega, sem perceber muito bem o que aquilo significava… Havia grupos e grupinhos, mas toda a gente se sentia perdida.
As manifestações dos Coletes Amarelos foram algo de uma ordem muito diferente do Maio de 68 e do que vemos agora?
Sim, foi outro fenómeno. De populações não propriamente pobres mas frágeis. Gente que vive nas periferias e, por isso, depende muito do automóvel para tudo: ir às compras, ir levar e buscar as crianças à escola, ir trabalhar, ir ao McDonald’s… E o aumento do preço dos combustíveis criou essa explosão nas ruas. Julgo que os Coletes Amarelos traduziam uma grande ligação ao consumismo: a sua grande reivindicação era quererem continuar a consumir. Hoje, na Europa, só se fala de inflação. Porquê? Porque as pessoas querem continuar a consumir! É compreensível… Não estamos habituados a privar-nos de nada. Queremos a nossa assinatura da Netflix, usar o nosso telefone à vontade, comer fora, ir de férias ao Algarve… Paradoxalmente, a revolta dos Coletes Amarelos reivindicava sobretudo uma continuação, o direito a continuar a consumir.
Sente que, a curto prazo, é possível uma vitória em França do partido de Le Pen, o Rassemblement National [RN]?
Nunca acreditei nisso. Agora, pela primeira vez, parece-me possível. Não digo que vão ganhar, mas há condições para que isso seja possível. O Partido Socialista já não existe… A velha direita explodiu. Macron, agora, não é nada popular e, pela lei, já não se pode candidatar nas próximas eleições [em 2027]. A esquerda tem quatro anos para se reorganizar, mas o problema é que uma boa parte dela é muito radical. Mélenchon é um admirador de [Hugo] Chávez… Quem sobra? Pode haver, claro, uma união de várias esquerdas que resulte e se mantenha. Mas o RN é homogéneo, é um só partido. Bom, faltam quatro anos, muito pode mudar…
Com o crescimento da China, acha que pode haver uma mudança de paradigma, no que respeita ao “individualismo”?
Acho que o que pode realmente mudar esse paradigma individualista, neste século, é a crise climática. Poderemos continuar a reivindicar o direito de cada um viver a sua vida como quiser? Se as coisas piorarem muito, vamos mesmo ter de nos adaptar; medidas radicais terão de ser tomadas e impostas. Outra coisa que pode mudar esse paradigma individualista é a eclosão de um grande conflito militar. Na guerra, com a mobilização obrigatória, não pode haver uma afirmação do individualismo…
E acredita que uma grande guerra é possível?
Claro que é. Basta olharmos para a Ucrânia hoje.
No seu discurso, otimismo e pessimismo andam, muitas vezes, lado a lado…
Creio que não sou pessimista. Vejo os problemas que crescem, sim, e não é fácil estar otimista, mas… Não estou desesperado, voilà. Acredito no génio humano, na senda dos homens das Luzes de que falávamos.