O novo livro de António Damásio, 73 anos, tem uma epígrafe de Rei Lear: “Eu vejo sentindo.” O neurocientista é um admirador confesso de Shakespeare e, em A Estranha Ordem das Coisas (primeira edição mundial lançada esta semana em Portugal pela Temas e Debates), o que faz é provar que a ação criadora dos sentimentos é anterior aos seres humanos. Transcrição de uma conversa-lição de vida, no Hotel Ritz, durante a sua curta passagem por Lisboa. Damásio fala baixinho, mas o que diz merece ser proclamado aos sete ventos.
Fiquei tão entusiasmada com o seu livro que disse logo aos meus amigos e à minha família para o lerem. Isto é uma reação emotiva?
Se quer que lhe diga, em primeiro lugar, parece-me que é uma reação inteligente [risos]. Depois, antes de mais nada, é uma reação intelectual: gostou do livro porque lhe pareceu ter certas qualidades. E foram essas qualidades que lhe despertaram uma emoção de gosto e de prazer. É isto que se passa com as emoções: começam com um determinado facto, há um objeto (uma cor, um som, um poema, um livro, um filme, uma pessoa…) que, por ter certas qualidades e um determinado esquema, provoca uma emoção. Tudo isto também pode acontecer com uma emoção desagradável se se der o caso de encontrar uma ideia com aspetos que lhe vão provocar o desagrado. A ordem é sempre esta, é assim que marcha a vida afetiva. A seguir a essa reação emocional vem um sentimento: um estado mental que, no fundo, corresponde à experiência da reação emocional que acabou de ter.
Tivemos séculos de História em que os afetos foram considerados dispensáveis e até prejudiciais. A melhor decisão é aquela que concilia a razão e a emoção?
Sim, essa é uma das coisas que defendo. A outra coisa que defendo é que, por norma, quando as pessoas olham para o aspeto dispensável das emoções, estão a pensar em emoções negativas. Isto é uma maneira extremamente estreita, e não particularmente inteligente, de olhar para as emoções. Como tudo o que faz parte da nossa vida afetiva, as emoções têm um lado positivo, agradável, recompensador, embora tenham também um lado negativo, punitivo, associado à dor e ao sofrimento. Repare na situação sociopolítica dos últimos anos: há sempre um protesto, uma atitude de zanga e de reivindicação, uma inabilidade em conciliar interesses. Fala-se no nacionalismo, que é uma reação emocional, mas a verdade é que também podiam existir reações de cooperação, de compaixão, de admiração, de altruísmo, de amor. E todas estas reações são também reações emocionais.
A palavra emoção tem má reputação por estar associada àquilo que é negativo?
Quando se pensa em emoção, pensa-se em pessoas que não colaboram, que estão zangadas, que têm ciúmes, ódios, invejas. O que é verdade é que existe este estado constante de motivação pelos sentimentos, um conjunto de monitorização de tudo aquilo que se passa na nossa vida intelectual e uma negociação que tem sempre a ver com as emoções. Para mim, uma emoção é uma reação afetiva que é visível, pública. Se tiver uma emoção, eu vejo-a no seu rosto e no seu corpo, percebo se está triste ou se está alegre. Eu e qualquer outra pessoa. Mas o sentimento, a tristeza ou a alegria, é uma coisa que só o próprio tem. Pode até mascará-lo, está triste e faz um esforço enorme para parecer alegre. Portanto, o sentimento é sempre uma experiência, uma vivência do estado emocional em que se está e que, por vezes, não é público.
O seu livro chama-se Uma Estranha Ordem das Coisas. É assim tão estranho desvalorizarmos as emoções?
O problema de se denegrirem as emoções está extremamente enraizado. Assim como também está extremamente enraizado o facto de se sobrevalorizar tudo aquilo que tem a ver com razão, conhecimento, intelectualidade fria. O “estranha” do título do livro também tem a ver com o facto de todo este edifício – da enorme ação criadora dos sentimentos da vida humana – ter raízes anteriores aos seres humanos. Há criaturas, como por exemplo as bactérias, que têm não sentimentos mas sim aquilo que está por baixo dos sentimentos: certas reações, movimentos e atitudes que lhes permitem governar a sua vida em relação a qualquer coisa que está subjacente aos sentimentos, a homeostasia. Em suma, este livro é sobre a forma como se tenta equilibrar aquilo que é o procedimento de um organismo vivo e o modo como esse organismo está em equilíbrio e, ao mesmo tempo, possui uma poupança de energia que vai permitir-lhe continuar para o futuro.
O que é a homeostasia?
Para nós (que, ao contrário de muitas outras criaturas, temos mente, sentimento e consciência), o estado da homeostasia do nosso corpo é expresso através dos sentimentos. Quando alguém diz que tem bem-estar, está a dizer que o seu cérebro e a sua mente foram informadas pelo seu corpo de que o estado do seu corpo é bom. Por outro lado, se alguém disser que se sente engripado, isto significa que o estado da sua homeostasia, o estado do seu corpo, acaba de informar o seu cérebro e a sua mente de que há qualquer coisa que não está bem.
Propõe o fim dessa dicotomia milenar corpo/mente?
O pensamento segundo o qual existe o cérebro de um lado e, do outro, os sentimentos e as emoções, e que estes não servem para nada? Pelo contrário: estão absolutamente ligados ao nosso bem-estar, estão absolutamente ligados à forma como se regula a nossa vida. Esse pensamento é uma ótica extremamente obtusa, é estar a ignorar aquilo que é a base da nossa vida. Por exemplo, as pessoas normalmente concebem o cérebro como o fabricador da mente. A verdade é que o cérebro fabrica a mente, mas em cooperação com o corpo. Se o corpo não existisse, o cérebro não fazia nada por si só. O cérebro é um servo do corpo. E a mente é o resultado de uma conversa constante em duas direções: o corpo a falar com o cérebro, o cérebro a falar com o corpo. O produto fundamental dessa conversa são as emoções e os sentimentos. A partir daí é que vem toda a nossa criatividade.
Enquanto seres humanos, a nossa excecionalidade, reside mais nas emoções do que na inteligência?
Nós temos sistema nervoso, mente, sentimento e uma grande criatividade. As bactérias têm apenas o princípio disto tudo: têm um princípio de atitude moral e de emotividade, mas não têm mente, não têm sentimentos, nem sequer têm sistema nervoso. Quando aparece, o sistema nervoso passa a ser o manda-chuva: organiza a forma como todas as ligações são feitas, permitindo construir mentes com sentimentos e a abertura para a intelectualidade. Os insetos sociais, por seu lado, são muito curiosos porque estão entre as bactérias e os seres humanos: são muito mais complexos do que as bactérias, são multicelulares e têm sistema nervoso. O que não têm é a possibilidade de ter uma grande intelectualidade, de inventar, de possuir uma determinação pessoal. Nós temos um certo grau de livre-arbítrio, mas os insetos só fazem aquilo que o genoma lhes manda fazer, tudo quanto fazem está de certo modo programado. Connosco, há também uma grande parte que está programada (infelizmente, não somos tão independentes como gostaríamos), mas há uma parte em que, de facto, somos nós que mandamos.
Aceitamos razoavelmente bem que as emoções originem a arte. No entanto, defende que as emoções estão na base da governança, da economia, da tecnologia…
Repare nos grandes sistemas da ética, os sistemas de justiça e de jurisprudência. Muitas vezes, as pessoas pensam nas leis ou nos princípios morais como tendo sido construídos sem qualquer espécie de relação com aquilo que somos do ponto de vista emocional. E isso não é verdade. Todos esses produtos – da governação à economia, passando pelos sistemas morais – são, eles próprios, o resultado da forma como nós reagimos àquilo que se está a passar à nossa volta.
Quer exemplificar?
Tudo aquilo que tem a ver com sistemas morais tem a ver com aquilo que mais nos preocupa e a que nós damos mais valor: saúde, vida, doença, morte, crime, roubo, traição, mentira, lealdade, cuidado com os outros, amor, compaixão. Vivemos cada dia fazendo apelo a estas qualidades e, quando elas faltam, contamos com qualquer espécie de prejuízo. Veja como as regras morais foram construídas por pessoas inteligentes e criadoras para reduzir a possibilidade de as coisas más acontecerem. As leis são aquilo que vem consequentemente porque a maior parte delas foi construída a partir da observação de princípios morais. Atente na marcha: vida, vida emocional e dos sentimentos, princípios morais, leis, justiça; vida, emoções e sentimentos, invenção da arte, prática da arte. Tudo vem desta raiz: sentimento, emoção, homeostasia, vida.
Isso é um sistema filosófico.
Sim, e o que torna tudo isto ainda mais interessante é o facto de estarmos num momento da História em que existem imensas coisas péssimas e horrorosas a acontecer no mundo e, ao mesmo tempo, também existem coisas muito boas. E algumas destas coisas provêm justamente da possibilidade de utilizar aquilo que a ciência nos traz para fazer uma nova filosofia daquilo que é a vida, daquilo que é a vida de todos nós. É juntar aquilo que vem da ciência com a maneira como olhamos e compreendemos a vida, fazendo um pensamento sobre o que é a vida. É isto que é a filosofia. A boa ciência é a ciência que permite ir até à filosofia. E a boa filosofia, por sua vez, é aquela que está baseada em boa ciência.
E o que é que acontece quando os sistemas políticos se apropriam dessas emoções, como aconteceu com o comunismo?
Tanto os sistemas políticos como os sistemas religiosos podem degenerar em coisas perfeitamente trágicas quando não há equilíbrio, quando não existe uma negociação. O que é importante é que tudo aquilo que se faça tenha sempre em vista, de modo muito saliente, a importância da vida do ser humano, a sua dignidade. Muitas vezes as pessoas pensam que, agora que sabemos tanto sobre o genoma e a maneira como o organismo funciona, não temos nada que nos distinga das outras criaturas, somos apenas mais um animal. No meu entender, isso é completamente falso. Em primeiro lugar, temos um enorme nível de consciência. Depois, conhecemos muito do mundo e, assim, conhecemo-nos a nós próprios. Por fim, a nossa memória ligada aos sentimentos distingue-nos dos outros seres vivos.
Como evitar que a tecnologia (e sobretudo a inteligência artificial) esteja ao serviço de interesses imorais?
Vejamos o que está acontecer sobretudo com as tecnologias de comunicação. As pessoas não se apercebem de que, com elas, veio uma capacidade – de entrar na nossa mente, de monopolizar a nossa atenção, de intervir na formação dos nossos juízos sobre coisas e pessoas… – a um nível completamente diferente daquilo que tínhamos até agora. É preciso estar atento ao modo como isso altera a forma de pensarmos, a forma como as crianças se educam (se autoeducam ou são educadas), como tudo isso pode servir para manipular a opinião pública. Observámos toda essa realidade numa série de processos eleitorais que ocorreram nos últimos dois anos.
O que pensa da automação aplicada ao nosso quotidiano?
Vivo na Califórnia e, numa cidade como Los Angeles, existem neste momento centenas, se não milhares, de automóveis completamente autónomos. Até agora rejeitei o self-driving, mas o meu carro tem self-parking [autoparqueamento] e lane-changing [mudança de faixa].
E é mais eficiente a fazê-lo do que um ser humano?
Em certas condições, é. Mandei desligar a self-breaking [autotravagem], que permitia travar o carro quando este estava a aproximar-se do da frente antes de eu atuar. Quando houver um grande número de pessoas a adotar esse sistema, é possível que a circulação na estrada se torne até muito mais segura do que é neste momento. Mas não me parece justo aceitar a entrada desse novo padrão antes de ter sido discutido, antes de se ter pensado em todos os problemas que uma tecnologia como essa vai originar. Continuando no self-driving, estou a falar, por exemplo, da estrutura ética que tem que ser incluída no programa de maneira a que o carro não faça violações éticas. Ou, pensando noutro caso, naquilo que uma automação desvairada pode fazer em relação a certos empregos.
Não vê benefícios nessa automação?
Claro que sim. Nos Estados Unidos da América, morrem todos os anos cerca de 37 mil pessoas na estrada. Desse ponto de vista, os carros autónomos podem significar um ganho extraordinário. Claro que existem outras coisas que, ainda antes disso, podemos fazer: tal como não ter à disposição armas de fogo que permitam pôr, em dez minutos, 600 pessoas no hospital… Trata-se de uma realidade que não tem razão nenhuma de ser. O que é importante é que as pessoas estejam conscientes daquilo que se está a passar: a inovação tecnológica traz benefícios extraordinários, mas também tem aspetos negativos que é preciso controlar.
Em termos políticos, a comunicação está a originar a polarização das opiniões, a fomentar nacionalismos e a exclusão do outro…?
É como se as pessoas vivessem num silo, estamos a assistir a um ensimesmamento do indivíduo, que está muito confortável juntos dos seus amigos e dos seus seguidores. Apenas tem de lidar com os que concordam consigo. A vida não é feita disso, a vida é feita de constantes negociações com aqueles que não pensam da mesma maneira que nós, com os que não são como nós.
Quando argumenta que é preciso educar para as emoções, está a falar numa educação formal?
É uma educação formal, uma educação à base do treino, semelhante ao aprender a tocar piano ou a praticar um desporto. Practice, practice, practice. E, claro, um treino precisa de ter mentores. Digamos que se trata de uma prática orientada, quando as pessoas cometem erros podem discutir o erro.
Quem devem ser esses mentores, as elites?
Todos nós. Claro que é melhor ter como mentores a elite do que a não-elite. Não vai correr bem se o analfabeto me vier ensinar a ler… Do ponto de vista da governação, as elites são um problema curioso: as elites são desejáveis, mas tornam-se um problema quando traem a sua missão e os outros, quando se corrompem. Quando temos elites que, em vez de se preocuparem com o bem comum, se preocupam com o lucro desenfreado, que vai contra os interesses da maioria, estamos perante elites corruptas.
Perante o atual estado do mundo, tem esperança?
Tenho, mas é uma esperança torturada. Por um lado, sinto um enorme contentamento com as coisas boas que se passam no mundo, com a enorme beleza que advém da realização artística e científica… Além disso, temos uma bagagem de conhecimento extraordinária sobre o Universo, uma grande parte do que se passa nas ciências é extraordinário, o que a tecnologia nos permite fazer é extraordinário. Por outro lado, subsistem muitos problemas sociais, políticos e de governação que atrasam esse estado de desenvolvimento. Existem coisas que correm bem durante um tempo e, depois, tudo se desmorona. Há dias em que, quando olho para o jornal, penso que não existe possibilidade de um novo iluminismo, mas depois, no dia seguinte, quando estabilizo, já acho que, apesar de não se tratar de uma curva regular de progresso, estamos a melhorar.
A que se devem esses falhanços?
São falhanços que, em grande parte, são causados por nós próprios. Somos nós que trazemos o germe do nosso próprio fracasso. Na nossa estrutura cerebral, temos regiões que controlam as nossas emoções, como é o caso da resposta do medo, da raiva, de ciúme e de desprezo. Tratam-se de reações que foram muito importantes, para os primatas e para o princípio do homo sapiens, quando vivíamos em condições muito diferentes das de agora. A civilização tem controlado o pior dessas respostas emocionais, mas não todas – e portanto ainda lá está a violência, o desagrado, a dificuldade em aceitar todos os que são diferentes de nós, quer pelo comportamento quer pela sua própria estrutura biológica.
E Portugal, como vê o atual estado da nossa condição?
Muito melhor do que o estado da condição humana em muitíssimos outros países, maiores e mais importantes do ponto de vista económico e tecnológico. Apesar de tudo o que corre mal, os portugueses conseguem conciliar-se mais facilmente do que muitos outros. Em relação à Europa, onde tem havido problemas graves, sobretudo do ponto de vista económico, conseguiram sair da parte pior desses problemas. O que os portugueses mais precisam é de serem tecnicamente mais capazes.
(Entrevista publicada na VISÃO 1287, de 2 de novembro de 2017)