Evelien Witlox é a pessoa do Banco Central Europeu (BCE) que está a coordenar o projeto do Euro Digital – uma nova abordagem que promete mudar de forma significativa o sistema financeiro nos países da Zona Euro, grupo do qual faz parte Portugal. A gestora do projeto esteve esta segunda-feira em Lisboa, para participar numa conferência organizada pelo Banco de Portugal, na qual explicou por que razão este é um projeto no qual o BCE está a investir seriamente. Mas a responsável leva na ‘mala’ para a viagem de regresso uma mão cheia de avisos de entidades portuguesas, sobretudo por parte da Associação Portuguesa de Bancos (APB).
“Quando analisámos a proposta do Euro Digital, tivemos algumas preocupações. A criação do Euro Digital vai provocar uma transferência de depósitos para o Euro Digital com consequências em termos de liquidez para o sistema financeiro. A redução da liquidez implica uma redução do financiamento e o aumento do custo de financiamento [da parte dos bancos]”, começou por dizer Norberto Rosa, secretário-geral da APB, numa das suas intervenções.
Este receio justifica-se pelo facto de o Euro Digital vir a necessitar (pelo menos da forma como está atualmente pensado) de uma conta em separado da conta bancária principal dos utilizadores e que poderá vir a ter um montante máximo de dinheiro em euros digitais à ordem. Por exemplo, os utilizadores só poderão vir a ter um máximo de 3000 euros digitais nesta sua nova conta (várias publicações apontam este montante como o limite máximo que o BCE estará a ponderar).
“Em Portugal, fizemos um levantamento perante os nossos associados. O efeito depende da dimensão dos bancos e do maior peso que existe nos depósitos relativamente ao financiamento bancário, mas em Portugal, utilizando esse valor [de referência] de 3000 euros, admitindo que todos os clientes que têm até 3000 euros os transferem para o Euro Digital, implicaria uma redução nos depósitos de particulares em 11% ou 12%. E teria um impacto no passivo superior a 6%”, sublinhou o porta-voz da APB no evento.
Mais. Como os bancos podem perder uma fatia significativa de depósitos para o Euro Digital (e os depósitos são uma parte importante da estabilidade financeira dos bancos), isso significa que a banca teria de recorrer a outras fontes de financiamento para compensar as perdas, o que segundo os cálculos da APB teria um impacto de 8% na margem financeira dos bancos portugueses.
“Na minha perspetiva, justificar-se-ia que o BCE compensasse esse financiamento com um custo semelhante ao dos depósitos à ordem”, defendeu Norberto Rosa. A associação que representa grande parte dos bancos que atuam em Portugal teme ainda que o Euro Digital traga outros ‘custos’ para o setor bancário, como a necessidade de entrarem em ação sempre que o balanço na conta de Euro Digital dos utilizadores supere os 3000 euros (seja em pagamento ou em recebimento) ou na monitorização de atividades ilícitas.
“Isto significa que para garantir esta distribuição do Euro Digital, estamos perante custos significativos, quer em termos de investimento, quer em termos de financiamento. Julgo que se justificaria que o BCE pudesse compensar parte destes custos. Não somos contra [o Euro Digital], somos favoráveis, mas não devia prejudicar em termos de rendibilidade e estabilidade”, defendeu o porta-voz da associação.
E a Associação Portuguesa de Bancos não foi a única a deixar ressalvas ao projeto.
Um projeto em evolução
Importa sublinhar que o projeto do Euro Digital entrou, no início de novembro, na segunda fase (de três), conhecida como fase de preparação. Isto significa, por um lado, que só agora é que o BCE vai começar a explorar a tecnologia e as empresas que estarão na base da criação do Euro Digital, assim como será desenhado todo o esquema financeiro da moeda digital. Significa, por outro, que o projeto é, por agora, apenas isso – um projeto. Existe a possibilidade de, terminada esta segunda fase de análise, ser decidido a nível europeu que este não é um plano para avançar.
Pelo menos nesta fase, o BCE está bastante investido na ideia da criação do Euro Digital. “Acreditamos que o Euro Digital pode tornar as vidas das pessoas mais simples”, começou por defender Evelien Witlox na sua intervenção no evento realizado pelo Banco de Portugal. Facilitará, diz, os pagamentos digitais na Zona Euro (nome dado ao grupo de países que usa o Euro como moeda oficial), seja entre pessoas, pessoas e vendedores, e até mesmo entre empresas. “[Atualmente] Não consegues pagar da mesma forma em toda a Europa digitalmente”, exemplificou. Por exemplo, o MB Way já é usado por cinco milhões de pessoas em Portugal, mas ainda não é possível usar o MB Way para fazer pagamentos em Espanha ou em Itália.
O BCE vê o Euro Digital também como uma forma de recuperar parte da soberania financeira. “A maioria dos pagamentos em retalho são feitos por empresas não europeias. [Os pagamentos digitais] São como a água, o gás e a eletricidade, nunca pensamos sobre isso, mas é um elemento central da nossa sociedade. Não havendo a possibilidade de pagar, causa um enorme stress nas pessoas. É importante termos independência estratégica nos pagamentos”, considerou Evelien Witlox.
A responsável respondeu inclusive a algumas das críticas que têm sido apontadas ao projeto. Um deles é o receio de que o Euro Digital permita criar um mecanismo de monitorização em massa da população, ao que a responsável do BCE responde com: “O Eurossistema não poderá ligar os dados de transação a indivíduos, serão dados anonimizados”. E garante também que o Euro Digital não será um dinheiro programável – isto é, o emissor do dinheiro (neste caso o BCE) poderia ditar, através de regras de programação, quanto dinheiro é que cada pessoa podia gastar, por exemplo, por mês. “Queremos ser claros, o Euro digital não é dinheiro programável”, garantiu em Lisboa.
Mas há outras preocupações além destas endereçadas pela responsável do BCE. Gonçalo Lobo Xavier, presidente da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED), está particularmente preocupado com as taxas que poderão existir relacionadas com a transação dos euros digitais.
“No caso dos retalhistas, queremos ser eficientes, queremos ter preços baixos e a questão das taxas [de pagamento] para nós faz parte de um processo difícil. É uma questão que nos preocupa. (…) Pedimos salvaguardas contra a imposição de taxas excessivamente elevadas, cobradas pelos bancos ou outros prestadores, é algo muito relevante para os consumidores e para os nossos negócios”, sublinhou.
Vinay Pranjivan, economista da DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor, sublinhou por seu lado o facto de não estar previsto, até ao momento, que as contas do Euro Digital possam vir a funcionar como depósitos com juros para os utilizadores, fazendo assim com que parte das poupanças na moeda digital também pudessem trazer alguma capitalização aos utilizadores. “A remuneração para montantes em Euro Digital não terá direito a juros, não há intenção de considerar uma remuneração”, referiu na sua intervenção.
O economista também vê no Euro Digital uma forma de destabilização do sistema financeiro, dando assim força às críticas feitas pela Associação Portuguesa de Bancos. “Sabíamos desde logo que o modelo de distribuição através dos intermediários ia levantar a questão da necessidade de compensação. Alertamos para esse efeito, os ecos já estão a chegar. O Norberto [da APB] trouxe números que mostram claramente que poderá ser um problema”.
Evelien Witlox, do Banco Central Europeu, está convencida que a introdução do Euro Digital trará “muitas oportunidades para o setor bancário fazer todo o tipo de inovações”. Mas acima de tudo, diz, “precisamos de garantir que o Euro está preparado para a era digital”.