Escrevem, para um consumidor que só quer saber se eventualmente vai gostar de uma garrafa, sobre o tempo de estágio em cimento, em inox ou em madeira; referem aromas que podem ir de frutos vermelhos (ok!) até chá da vertente norte dos Himalaias ou flores nascidas em noite de lua cheia (sim, estou a exagerar); dissertam sobre as formas de maceração das uvas, estágios e demais processos sem explicar em que é que isso se pode refletir – ou não – nos vinhos. O que é muito importante – sobretudo para quem trabalha no setor ou é estudioso – mas que é relativamente irrelevante para 90% dos consumidores.
Uma enóloga americana, Maggie Harrison, que atribui à sua sinestesia (uma condição neurológica que leva a que se interprete de formas diferentes os sinais percebidos pelo sistema sensorial, percecionando vários sentidos de uma só vez) uma forma muito curiosa de fazer os muito bem cotados vinhos que produz no Oregon, defende que o vinho é uma construção cultural e não natural – os seus vinhos são adjetivados por quem os prova como sendo verdadeiras amostras de arte. Dizem que fazem ver cores, que se sentem emoções diferentes quando se bebe um Pinot Noir de Harrisson do que quando se bebe um Pinot Noir de outro qualquer produtor.
Não faço ideia se será verdade ou não – terei de conseguir experimentar um para poder ter opinião – mas há algo que faz sentido nas palavras de Maggie e que nos ajuda e perceber também que o “mundo dos vinhos” nunca poderá ser tão elitista quanto muitos querem fazer dele.
É óbvio que o vinho tem uma componente cultural fortíssima. Por mais que produtores e enólogos defendam que os seus vinhos são “expressão máxima do terroir” onde são feitos, a verdade é que todos eles tentam, de alguma forma, responder às exigências do mercado – sem consumidores não há vinho.
A tendência de vinhos com mais ou menos madeira (quando passam por um estágio em barricas), de vinhos com mais ou menos álcool, de vinhos com mais ou menos cor está sempre a responder àquilo que os consumidores desejam – a fatores culturais. Mesmo o facto de haver pessoas que gostam mais de vinhos leves, ou mais estruturados, ou com mais acidez ou com mais taninos terá, sempre, a ver com memórias sensoriais e com gostos subjetivos. Afinal, também há quem prefira iogurtes de morango aos de banana ou que entre legumes grelhados ou cozidos prefira batatas fritas. Em todas estas opções há elementos naturais – boa matéria-prima fará bons produtos, à partida – mas desde o açúcar ao sal, à forma como se fritam as batatas, tudo influencia o gosto de cada um.
Mas, se há quem goste de ameixas pretas e outros que preferem ameixas brancas, se há quem não aprecie frutos tropicais e quem adore caracóis, por que teimamos em definir que vinhos são apropriados para os consumidores, segundo uma bitola que segue poucos critérios que não o único possível: a subjetividade de quem o bebe?
Como o vinho. Que precisa de uvas saudáveis – e de uma adega limpa, naturalmente – para ser um bom produto, mas que depois toma o perfil de quem o faz, porque a pensar em quem o bebe.
Há até quem faça alguns vinhos a pensar nos críticos – ficou conhecida a expressão ‘Parkeirização’ dos vinhos quando, a determinada altura, se percebeu que algumas referências em redor do mundo tentavam garantir uma boa nota de Robert Parker, o americano cujas notas se tornaram quase lei para quem quer fazer boa figura num jantar com amigos.
Mas, se há quem goste de ameixas pretas e outros que preferem ameixas brancas, se há quem não aprecie frutos tropicais e quem adore caracóis, por que teimamos em definir que vinhos são apropriados para os consumidores, segundo uma bitola que segue poucos critérios que não o único possível: a subjetividade de quem o bebe?
Perguntar-se-á o leitor por que razão escrevo tudo isto hoje. A verdade é que provei, há dias, dois vinhos bastante diferentes: o Cloudy Bay Sauvingon Blanc 2022, produzido pela Pegasus Bay, na Nova Zelândia e o Soalheiro Primeiras Vinhas 2021, produzido em Menção e Melgaço, e um 100% Alvarinho de vinhas velhas.
Os dois vinhos são aquilo a que comummente se chama de ‘easy drinking’: vinhos pouco complexos, perfeitos para dias quentes e pratos leves, podendo ambos ser bebidos como aperitivo – embora os 13,5% de álcool do Cloudy Bay apreciem alguma comida a acompanhar. Ambos monovarietais, de castas que geralmente também são apreciadas por todos os consumidores por serem florais, frutadas e facilmente reconhecidas porque plantadas em muitos dos países que produzem vinho.
Então por que gostei mais de um do que de outro, sobretudo se reconhecer que são os dois vinhos muitíssimo bem feitos? Bom, para já porque o meu palato reconhece melhor as características de um do que de outro – a tal memória que nos ajuda quando identificamos elementos de que gostamos – e depois porque o intenso aroma a maracujá do Cloudy Bay nem sempre resulta para mim. É um vinho muito bem feito (como praticamente todos os que hoje chegam ao mercado), muito equilibrado na boca mas com um final que eu gostaria que fosse um bocadinho mais longo. Afinal, quanto mais tempo o sabor dele se mantiver na boca, menos precisamos de beber, verdade?
Na boca, é um vinho que nos sabe a verão: a citrinos, a melão, a pêssegos, a pêras. E, com amigos, é companhia ideal para um jantar de saladas, de tábuas de queijos e enchidos, de petiscos ao invés de grandes produções culinárias. Se acho aposta segura para ter na garrafeira e levar para um jantar em que haja muitos gostos diferentes à mesa? Acho. É um Sauvignon Blanc que sabe a Sauvignon Blanc mas que tem umas curiosidades – como um aroma a petróleo mais marcado que muitos dos seus congéneres, quase a lembrar os Riesling – que fazem dele uma interessante aposta na sua faixa de preços (PVP €35 em Portugal).
Já o Soalheiro é um belíssimo Alvarinho que nota alguma evolução, apesar de manter a frescura e a leveza de uma casta que é tão nossa. Algo picante na boca, tem um final muito prolongado que nos faz fechar os olhos e ficar a degustá-lo durante muito tempo, e tem uns sabores vegetais, e a lembrar-nos o cheiro a pedras molhadas naquelas primeiras chuvas de primavera que nos refrescam bastante em dias de muito calor. Apesar de a natureza ter feito grande parte do seu trabalho, entre as boas uvas e umas resistentes vinhas velhas, é de aplaudir quem, culturalmente, nos faz despertar vários sentidos na boca – e sim, faz-nos mesmo salivar e, naturalmente, querer beber mais, quando provamos um golo deste vinho verde, sobretudo se for acompanhado por mariscos ou carnes brancas. Por cerca de €20 a garrafa, este será uma daquelas referências a manter no frio durante o verão, porque possivelmente vai agradar até aos mais reticentes em beber vinho verde. À partida. Porque, afinal, a premissa mantém-se: o melhor vinho para si será sempre aquele que lhe der prazer a beber. E não se preocupe se não for aclamado pelos críticos de vinho: afinal, também não lhes pergunta se deve optar entre um pudim de abade priscos ou uma sericaia, pois não?
Na nossa escala de notação enológica, o vinho produzido pela Pegasus Bay recebeu um A+ e o Soalheiro recebeu um AA.
Escala de Notação Enológica*
AAA | Fabuloso |
AA | Muito bom |
A | Bom |
BBB | Satisfatório |
BB | Mau |
C | Não Beba! |