As pistas iam-se acumulando, mas os números das contas nacionais do terceiro trimestre confirmaram-no: a economia perdeu gás e as exportações de serviços, onde está o turismo, pouco ajudaram. O mais curioso é que isso acontece num período em que Portugal recebeu o Papa Francisco e, com ele, centenas de milhares de peregrinos. Seria de esperar um impacto económico relevante. À EXAME, a Câmara de Lisboa contrapõe que foi um dos melhores agostos de sempre para o turismo no concelho e que há um impacto na notoriedade da cidade difícil de medir.
Entre junho e setembro, a economia portuguesa cresceu 1,9% face ao mesmo período de 2023, mas caiu 0,2% na comparação com o trimestre anterior, refletindo um abrandamento que se ia observando nos indicadores avançados. Para esse resultado foi decisivo o comportamento das exportações que, em termos homólogos, avançaram apenas 0,1% (4,9% no trimestre anterior) e, em cadeia, caíram 2,3%.
Talvez mais surpreendente: este resultado desapontante observa-se tanto na venda de bens como de serviços. O segundo é especialmente relevante se quisermos avaliar o impacto de um evento como a JMJ porque é aí que se manifesta o impacto do turismo. Das cervejas e águas aos ubers e museus, todas as despesas feitas por visitantes estrangeiros. Porém, as exportações de serviços tiveram um crescimento homólogo de apenas 5,9% (14,3% no trimestre anterior) e afundaram 3,9% em cadeia.
Na verdade, foi a procura interna – consumo e investimento privado e público – que permitiu segurar a economia, contribuindo com 1,7 pontos percentuais dos 1,9% de crescimento homólogo. Na análise em cadeia, ela dá um contributo positivo, enquanto a procura externa líquida ajudou à queda (no trimestre anterior tinha sido ao contrário).
O Banco de Portugal corrobora que o impacto do turismo se observa nesses indicadores. “Confirmamos que as despesas realizadas em Portugal por não residentes no âmbito de uma viagem ou estadia de curto prazo, enquadradas em eventos como as Jornadas Mundiais da Juventude, são registadas na balança de pagamentos como exportações de serviços, nomeadamente de viagens e turismo”, responde à EXAME.
O BdP acrescenta que este tipo de evento pode também ter efeitos na exportação de bens e serviços necessários à sua preparação, assim como no “recebimento de fundos sob a forma de donativos do exterior ou se implicar o recurso a financiamento externo”.
Embora avise que quantificar de forma isolada um encontro desta natureza é complicado, nota que as conclusões desapontantes que podemos tirar desses dados coincidem com outros indicadores. “Nas exportações de viagens e turismo, onde o impacto seria esperado com maior intensidade, verificam-se crescimentos homólogos nos meses de julho e agosto, embora menos expressivos do que nos meses anteriores, o que é corroborado por outros dados estatísticos, como os dados publicados pelo INE relativos a dormidas não residentes ou os dados publicados pelo Banco de Portugal relativos a compras e levantamentos em Portugal com cartões emitidos no estrangeiro”, acrescenta a instituição liderada por Mário Centeno.
Este impacto menor soma-se a outros indicadores que sugerem que o número de participantes terá sido inferior ao esperado. Uma notícia recente do “Público” dava conta que um fornecedor reclama um milhão de euros à Fundação JMJ, em parte porque o número de visitantes do Parque Tejo desapontou. O diário nota que o número de peregrinos ficou em linha com expectativas (400 mil), mas na zona de visitantes esperavam-se 600 a 800 mil e estiveram apenas 30 mil
Estes números contrastam com a ambição de algum discurso político. António Costa disse que a JMJ “tem em si quer um efeito catalisador, quer um efeito de retorno imediato”. Admitindo que a projeção do País “não se reflete logo nas contas do ano”, também falou num impacto de curto prazo, “porque estas centenas de milhares de pessoas que vieram a Portugal para este evento estão a consumir nos restaurantes, nos cafés, a instalar-se nos estabelecimentos da hotelaria, a circular nos meios de transporte e, porventura, irão comprar mais alguma coisa”.
O Governo chamou-lhe o “maior evento de sempre em Portugal”. Já depois da partida do Papa, o Presidente da República era taxativo: “Com o que se passou economicamente neste mês, em relação a estes jovens que andaram em todo o país e sobretudo em Lisboa, está mais que pago.”
Não tira a economia do vermelho
Outros indicadores já sugeriam que o impacto económico da JMJ pode ter sido menos significativo. A SIBS publicou dados sobre operações durante a semana do evento, permitindo concluir que o número de transações com cartão estrangeiro aumentou 21% em Portugal inteiro em comparação com os mesmos dias de 2022. E disparou 40% quando olhamos para os distritos de Lisboa, Setúbal e Santarém.
Porém, se olharmos para os valores dessas operações o efeito parece mais modesto. Os montantes de transações com cartões estrangeiros nos distritos JMJ aumentaram 13% e, se lhes juntarmos os portugueses – olhando para o total – só cresceram 2%. Aliás, aumentam tanto como em Portugal inteiro (2%).
Pouco tempo depois do evento, o indicador avançado de atividade económica publicado pelo Banco de Portugal mostrava que a JMJ não tinha tirado a economia portuguesa do vermelho. À EXAME, o Instituto Nacional de Estatística (INE) adianta uma hipótese que muitos lisboetas terão notado no terreno: “Podem ter ocorrido efeitos opostos associados ao eventual desvio de outros turistas que poderão ter evitado Lisboa naquele período”. Se vive em Lisboa, provavelmente ouviu algum amigo dizer que ia sair da cidade durante aquela semana ou que ia fazer vida de monge.
É possível que se tenha verificado um cenário antecipado por muitos: muitos estrangeiros visitaram Portugal, mas gastaram pouco e levaram a uma retração do consumo dos portugueses. Isso bate certo com alguns dos depoimentos que fomos ouvindo da parte de comerciantes lisboetas. “Alguns só vêm encher as garrafas de água e nem pedem. Outros estão horas sentados a conversar, mas só bebem um café. São jovens, também não têm muito dinheiro para gastar”, dizia a gestora da pastelaria Benard ao JN, queixando-se que “a maioria dos lisboetas saíram da cidade esta semana e os clientes habituais não vieram”.
“Os peregrinos deram uma nova vida à rua, mas não me trouxe a nível de caixa um aumento. Os valores foram semelhantes. Nós não tínhamos nenhum acordo, porque nem sequer fomos contactados para isso, portanto o que servíamos eram águas, coca-colas, sandes e bifanas”, dizia um comerciante à SIC.
“A semana da jornada não foi, na generalidade, boa. Houve quebras nalgumas lojas, sobretudo em setores que não têm a ver com o alimentar, e quebras significativas. E no setor alimentar correu muito bem a quem tinha contratos com a organização da JMJ. Aí houve muito sucesso e foi acima do esperado”, afirmou Vasco Melo, vice-presidente da Associação de Dinamização da Baixa Pombalina, à Lusa. O “Dinheiro Vivo” fez um bom resumo deste tipo de declarações.
A Associação da Hotelaria de Portugal diz que “realidade ficou bastante aquém das expectativas”.
Ainda assim, o INE também avisa que é difícil para os grandes números apanharem o impacto do encontro. Embora a informação estatística capte a evolução da economia, “não se dispõe de informação específica que permita quantificar em concreto o impacto deste evento”.
Os números de Moedas
A Câmara de Lisboa apresenta outros números que mostram que agosto foi um mês forte para o turismo em Lisboa, “um dos melhores de sempre”. “Lisboa fechou o mês de Agosto com mais 31,7% de proveitos, que equivalem a um aumento nas receitas de 400 milhões face a 2022, segundo dados do Observatório do Turismo de Lisboa e do Infogeste”, aponta fonte oficial da CML. “Se a comparação for feita com 2019, as receitas aumentam 470 milhões de euros com mais 37,6% em proveitos globais no turismo. Face a 2019, Lisboa é o segundo destino europeu que apresenta a maior recuperação pós pandemia com 8,2%.”
Questionada pela EXAME acerca da discrepância que parece existir entre a chegada de tanta gente e um impacto económico, ao que tudo indica, pouco expressivo, a CML aponta para efeitos difíceis de medir. “Além dos números do turismo, de impacto muito positivo na economia da cidade, o impacto da JMJ em Lisboa é também um impacto indireto, não mensurável. A notoriedade de Lisboa, a capacidade que houve de converter Lisboa no centro do mundo, durante os dias em que a Jornada aconteceu e em que o Papa Francisco esteve na nossa cidade. Lisboa mostrou ao mundo ser capaz de organizar um evento desta magnitude (nunca antes vista na cidade ou no país)”, argumenta a Câmara.
Fonte oficial do executivo municipal cita a existência de 8 mil notícias na internet e 7 mil notícias em “dezenas de televisões, rádios e jornais de todo o mundo”, chegando, no total, a “500 milhões de lares”. Além de chegar “aos quatro cantos do mundo”, Lisboa “ficará para sempre na memória destes um milhão e quinhentas mil pessoas que aqui estiveram em agosto”.
Na véspera do evento, Carlos Moedas já tinha ensaiado este discurso, dizendo em entrevista à SIC que a JMJ é um investimento “sem preço”. Contudo, essa linha de argumentação é diferente daquela que o autarca utilizou antes, fazendo contas aquilo que cada turista poderia gastar e chegando a um impacto que podia ir aos 400 milhões de euros. Seria um “retorno absolutamente extraordinário”. Prometeu também que o evento teria um valor “tangível”.
Recorde-se que a JMJ foi marcada por várias polémicas acerca dos seus custos, em específico no que diz respeito à construção do altar-palco no Parque Tejo, obrigando à sua revisão. A despesa com a estrutura baixou de 4,2 para 2,9 milhões de euros. Essa infraestrutura será um legado do evento e poderá receber eventos culturais no futuro, ainda que algumas entidades tinham citado o desnivelamento do terreno como um obstáculo.
Antes ainda do evento, um estudo encomendado pela Fundação da JMJ à PwC e ao ISEG concluía que o impacto podia aproximar-se dos 500 milhões de euros. A CML diz estar previsto para o primeiro trimestre de 2024 a apresentação do relatório final da JMJ, realizado pelas mesmas entidades.
João Duque, que coordenou esse estudo prévio e será responsável pelo segundo, diz à EXAME que está “ainda à espera dos dados da JMJ”. Inicialmente, estava previsto que essas contas estivessem fechadas ainda este ano, mas a CML e a JMJ empurram-nas agora para 2024. A oposição fala em falta de transparência. “Os dados da JMJ são fundamentais para fazermos esses cálculos”, acrescenta o presidente do ISEG.
Contudo, assume desconfiar das conclusões que se podem tirar dos dados estatísticos que conhecemos. “Acho estranho que um milhão de pessoas que venha de fora não tenha impacto nenhum. Mas, se estivermos num momento de abrandamento da economia, o efeito de uma semana pode ser pífio”, adianta.
Sem novos números, pode ser uma questão de fé.