O choque provocado pela Covid-19 está a fazer dos Estados o centro do universo na resposta à pandemia, tanto à emergência de saúde pública como àquela que pode ser a maior crise económica em quase 100 anos. O setor público terá de servir como ponto de socorro para os diferentes setores de atividade, procurando mantê-los à tona. Esses apoios deverão durar bastante tempo e, mesmo quando houver uma imunidade generalizada, podemos estar perante um ponto de não retorno. Não é claro que se volte atrás tão cedo .
O coronavírus foi responsável por um fast forward na forma como muitos olham para a economia. Em poucos dias, ficou claro para a maioria dos responsáveis políticos que adiar investimentos públicos em saúde é perigoso, que um Estado bem preparado é importante em momentos de aperto, que pode ser boa ideia colocar incentivos no terreno para tornar os fluxos de comércio internacional menos vulneráveis a choques imprevisíveis e que os governos provavelmente deveriam ter um papel mais interventivo na correção das desigualdades na sociedade. Pelo caminho, alguns tabus podem desaparecer, seja o financiamento de défices por bancos centrais ou a criação de rendimentos sociais incondicionais. A questão não é tanto “se vai acontecer”, mas mais “quanto tempo irá durar”. Em maior ou em menor medida, aquilo a que estamos a assistir aponta num sentido: um Estado mais presente na economia, com mais poderes e mais responsabilidades.
“Eu julgo que é incontornável o facto de esta crise ter consequências muito piores, porque o Estado andou a dormir nas últimas décadas. Não só evitávamos uma parte dos custos económicos – se houvesse excesso de capacidade nos sistemas de saúde que nos permitisse continuar uma vida mais normal – como a enorme desigualdade da sociedade piora as suas consequências”, aponta Susana Peralta, economista da Nova SBE, numa conversa com a EXAME, para revista de maio. “Basta pensar na diferença entre quem tem vínculos laborais e vai continuar a receber o salário e depois entre a enorme massa de pessoas com horário zero, sem vínculos estáveis, informais e proprietários de pequenos serviços de proximidade. Para não falar nas crianças que ficam sem uma alimentação decente porque as escolas fecham.”
O que já está a acontecer no terreno? Em abril, o Eco fazia a conta que, entre funcionários públicos, apoios ao lay-off à família e a recibos verdes e beneficiários de subsídio de desemprego ou de doença, o Estado português já estava a pagar ou comparticipar o rendimento de 2,3 milhões de portugueses. Quase metade da força de trabalho do País.
Em entrevista à VISÃO desta semana, o ministro da Economia lembrava que a Segurança Social já tinha pagado 470 milhões de euros a quase 100 mil empresas, para manter 780 mil trabalhadores em lay-off. No final de maio, os grupos portugueses já tinham acedido a mais de 3,5 mil milhões de euros em linhas de crédito com garantia do Estado. O Conselho das Finanças Públicas estima que o Governo gaste entre 3 e 4,6 mil milhões de euros em medidas de combate ao novo coronavírus.
Os apoios sociais estão a ter um reforço abrangente. Em Portugal, os subsídios de desemprego, o Rendimento Social de Inserção e o Complemento Solidário para Idosos foram automaticamente renovados. Outros países estão a ir mais longe. Nos EUA, Donald Trump anunciou o envio de cheques de 1.200 dólares para a casa de (quase) todos os norte-americanos. E poderá haver uma segunda ronda. Em grande parte do mundo, os governos estão a apoiar as perdas de rendimento dos trabalhadores e a permitir alívio no pagamento de crédito, prestações de casa e outros contratos.
“Até agora temos tido o Estado social em acção, em particular, através dos layoffs, amortecendo o impacto imediato da crise. Este tipo de actuação deverá diminuir de intensidade à medida que as restrições ao funcionamento da economia forem levantadas”, antecipa o economista Ricardo Arroja. “Porém, é provável que as ajudas de Estado, através do Estado intervencionista, perdurem durante alguns anos, levando à cristalização do protagonismo do sector público em alguns países.”
Essa intervenção está a chegar ao próprio coração das empresas. A situação de fragilidade do setor privado pode obrigar o Estado a entrar no capital de alguns grupos e, em certos casos, a nacionalizá-los. Aliás, são os próprios representantes dos patrões que o pedem. A CIP tem estado na linha da frente, pedindo a criação de um fundo de capitalização de três mil milhões de euros. Por toda a Europa, a Comissão diz já ter aprovado 175 ajudas de Estado, num total de 2,13 biliões (sim, com b) de euros. Quase metade vieram da Alemanha.
Adidas, Puma, Thyssenkrupp, Renault são algumas das empresas que já receberão ou deverão receber apoios públicos. Paris e Berlim têm assumido que não terão problemas em nacionalizar empresas estratégicas. O caso mais dramático são as companhias aéreas. Já foi aprovada para a Lufthansa um resgate de 9 mil milhões de euros. E é apenas uma numa longa lista. Air France-KLM, American Airlines, Delta Airlines, Easyjet, United Airlines. Todas receberam apoios. Até a Ryanair, muito crítica destas medidas, utilizou uma linha de crédito garantida pelo Estado. A Alitália será nacionalizada. No total, os governos já se comprometeram com 75 mil milhões de euros para o setor. Mais de 1/3 do PIB português. Em Portugal, o Governo tem deixado em aberto a possibilidade de nacionalizar a TAP, embora essa não pareça ser a sua opção preferida. Qualquer que seja a solução, para que a empresa sobreviva, deverá ser necessário injetar mais de mil milhões de euros de dinheiro dos contribuintes.
Ou seja, é um Estado responsável por uma enorme fatia dos salários, do qual as famílias dependem para apoios sociais, decisivo para garantir o acesso ao crédito e imprescindível para manter as empresas à tona.
Todas estas transformações acabarão refletidas nos indicadores de contas públicas, com o engordar de défices orçamentais e a explosão das dívidas públicas. E é aí que podem estar os limites de intervenção de um país como Portugal. Com uma dívida bastante elevada e sem a capacidade de fogo de uma Alemanha, “a reduzida capacidade de intervenção orçamental limitará a atribuição e utilização de ajudas de Estado”, prevê Ricardo Arroja. “Neste aspecto, Portugal talvez saia da crise pandémica como um dos países europeus onde o peso do Estado terá aumentado menos.”
Estado português vai ao ginásio
No entanto, essa não parece ser a intenção dos responsáveis políticos. António Costa Silva, que ficámos há dias a saber, é o responsável por preparar um plano de recuperação para os próximos dez anos, deixou isso claro nas primeiras entrevistas que deu. “Uma intervenção forte do Estado. Esta crise mostrou que o papel do Estado tem de ser revalorizado”, afirmou à RTP. “Mais Estado na economia. O Estado, no fundo, é o último protetor contra todo o tipo de ameaças. Sou favorável aos mercados. Os mercados têm de funcionar e o papel fundamental é das empresas, mas o Estado tem de intervir.”
Dias depois, ao Público, esclareceu que, sem mais Estado, “a economia entra em coma”, mas era “absolutamente contra visões estatizantes ou coletivistas da economia” e que o seu plano prevê uma “estratégia de retirada”.
O Programa de Estabilização Económica e Social, aprovado quinta-feira, mostra a intensificação da intervenção do Estado na economia. O layoff simplificado acaba em julho para quase todos, mas há muito mais medidas que ficarão connosco no médio-longo prazo: prolongamento de moratórias, mais linhas de crédito, apoios para independentes, isenções de impostos, programas de habitação, projeto de ensino digital e contratações no SNS.
Em declarações para a EXAME de maio, Fernando Alexandre não via outra hipótese, a curto prazo, que não seja a extensão dos poderes do setor público. Numa primeira fase desta crise, em que observamos “falhas no funcionamento dos mercados”, o Estado deve intervir para “proteger o rendimento e o emprego das pessoas, e criar condições de liquidez e solvabilidade das empresas”, explicava o professor na Universidade do Minho. “A coordenação do Estado será essencial no controlo da pandemia e na recuperação da economia.”
Pelo menos no curto prazo, é inquestionável que o Estado irá aumentar muito a sua despesa e intervenção na economia. As estimativas do CFP apontam para que os gastos públicos disparem de 42,7% para 48,8% do PIB. Num cenário adverso, podem chegar a 52% que, a confirmar-se, será o maior nível de despesa desde que o INE tem dados (a série começa em 1995). Um agravamento que virá, quase todo, de um maior protagonismo dos apoios sociais.
Esse maior músculo na intervenção pública deverá ser impulsionado pelo pacote de resposta comum apresentado pela Comissão Europeia na semana passada, que inclui uma emissão de dívida conjunta de 750 mil milhões de euros, para serem distribuídos em subvenções e empréstimos para os Estados-membros. As contas preliminares sugerem que a Portugal deverão caber 15,5 mil milhões a “fundo perdido” e 10,8 mil milhões em empréstimos, que se somam aos restantes fundos comunitários.
À VISÃO, o ministro da Economia dizia em relação aos montantes previstos, que o fundo de recuperação “é muito relevante”. “É, de facto, uma bazuca.” Pedro Siza Vieira garantia que iremos “ter muitos recursos financeiros” e avisava as empresas para se prepararem, porque “vão ter uma oportunidade provavelmente única na nossa História para aplicar recursos naquilo que faz falta e criar condições de crescimento, de competitividade e de produtividade.”
Riscos para a democracia
Essa é apenas a dimensão económica. Os países aprovaram versões de Estado de emergência ou de excepção que conferiram aos governos poderes extraordinários: supressão da mobilidade dos cidadãos, limitação da atividade das empresas e proibição de manifestações religiosas ou sindicais. O exercício desses poderes chegou a tomar contornos dignos de Black Mirror, com drones a patrulhar algumas áreas e a mandar pessoas para casa.
Nalguns casos, o momento de emergência foi aproveitado para colocar em causa a própria democracia. É o caso da Hungria, onde há detenções por críticas ao governo no facebook e dezenas de investigações. A Freedom House já não considera o país uma democracia. Índia, Israel e Polónia são outros exemplos onde começamos a ver sinais preocupantes. No Brasil, é difícil argumentar que Bolsonaro consolidou o seu poder, mas já há ameaças e risco de um golpe militar.
Além disso, a necessidade de combater a pandemia está permitir que os governos obtenham mais informação do que alguma vez tiveram sobre os seus cidadãos, com muita pressão para o desenvolvimento de soluções tecnológicas que permitam aceder a dados de localização e estado de saúde de cada um de nós, para limitar o contágio. Que consequências haverá para a privacidade? As pessoas parecem concordar com soluções desse género. E, na realidade, não é como se gigantes tecnológicos do setor privado não tenham já acesso a informação semelhante.
Efeitos estruturais
Muitos economistas acreditam que o Estado está apenas a inchar temporariamente e que, mal apareça uma vacina ou um tratamento eficaz, tudo regressará ao pré-crise. Mas é duvidoso que as consequências desapareçam de um dia para o outro. Como se está a verificar em Portugal com a extensão das moratórias, uma versão modificada do layoff e criação de linhas para capitalizar as empresas, o Estado ainda terá de funcionar como suporte de oxigénio à economia durante algum tempo.
Em entrevista à EXAME, o historiador Adam Tooze via como bastante provável a possibilidade de passar a haver uma necessidade constante de apoio público à economia, mas a dimensão estrutural deste aumento do peso do Estado dependerá muito da velocidade da recuperação. “É fácil imaginar um cenário em que o crescimento não regressa, a dívida continua a crescer e a possibilidade de uma estratégia de austeridade desaparece. Nesse caso, não esperaria uma reação no sentido de “Estado pequeno”, como vimos no pós-2010”, refere.
Ricardo Arroja não acredita que regressemos ao grande Estado “no sentido da planificação central”. Mas antecipa um regresso ao modelo das golden shares. “O Estado intervencionista vai ganhar relevância e o sector empresarial do Estado também. Algumas empresas, nas quais o Estado venha eventualmente a entrar, vão provavelmente transformar-se num novo tipo de parceria pública-privada, com intervenção directa do Estado na gestão operacional e não apenas com remissão do Estado à definição estratégica da actividade”, diz à EXAME.
Além disso, é também possível que uma geração inteira acabe influenciada por este período? Que opinião terá sobre a necessidade de um SNS forte? Ao ver os pais sem rendimentos ou ela própria sem trabalho, como verá os vínculos precários típicos da gig economy? Apoios sociais abrangentes aumentarão as exigências de esse tipo de programas?
O Financial Times escreveu em março um editorial onde sublinhava a necessidade de olharmos de forma diferente para o papel do setor público. Amplamente partilhado, uma vez que o jornal britânico não é propriamente conhecido por defender intervenções musculadas do Estado na economia, adotando normalmente uma perspetiva empresarial, o texto do FT pedia “reformas radicais” que invertessem a direção política das últimas quatro décadas. “Os governos terão de aceitar um papel mais ativo na economia. Têm de olhar para os serviços públicos como investimentos, em vez de passivos/obrigações, e encontrar formas de tornar o mercado de trabalho menos inseguro”. O editorial referia também a necessidade de mais medidas de redistribuição – em concreto, o rendimento básico incondicional e impostos sobre a riqueza – e lembrava que o pós-II Guerra Mundial trouxe reformas profundas na arquitetura dos Estados.
Depois de quatro décadas em que a ideia de “Estado mínimo” ganhou a batalha política e intelectual – quanto menos impostos e menos intervenção na economia, melhor -, a maré já estava a mudar e a Covid-19 pode acelerar esse processo. A Economist acha que é inevitável. “O próprio governo pode ser reabilitado. A pulsão para diminuir a dimensão do Estado nasceu da convicção de que o mercado decide de forma mais eficiente. As pandemias desafiam essa ideia”, lia-se num artigo do final de março. “A Covid-19 combina uma mobilização urgente, com uma experiência de dor coletiva, quebra de tabus económicos e com dar à luz aquilo que antes eram ideias radicais, aponta Peter Hennessy, um historiador constitucional. O resultado pode um Estado mais “cheio” e intervencionista. “A maré de ideias e de aspectos práticos mudou. Um novo consenso está a nascer da necessidade”, diz ele.”
Desde o início da crise que economistas mais encostados à esquerda têm argumentado que esta é uma óptima oportunidade para reformar o sistema económico. Mariana Mazzucato, da University College London, pensa que é uma boa altura para aumentar os níveis de investimento, criar novas instituições públicas, direcionar os esforços de inovação, reformular a lógica das parcerias com os privados e exigir que o dinheiro público tenha como contrapartida a transição para uma economia mais “verde”.
“Agora temos uma oportunidade para usar esta crise como forma de perceber como podemos ter um capitalismo diferente. Isso exige que repensemos aquilo para que servem os governos: em vez de simplesmente corrigirem falhas de mercado quando elas aparecem, devem encaminhar-se no sentido de ativamente moldarem e criarem mercados que produzam um crescimento sustentável e inclusivo”, escreveu no Guardian.
Contudo, nem todos vêem como positivas as possíveis transformações decorrentes de um Estado mais interventivo. “As empresas vão tornar-se mais susceptíveis a considerações de natureza política. O risco de corrupção aumentará”, avisa Ricardo Arroja. “Muitas empresas serão mantidas artificialmente e a própria regulamentação tenderá a favorecer negócios de maior dimensão. Haverá o risco de ossificação da economia, com a correspondente perda de produtividade e inovação. Haverá maior concentração empresarial e a vida será mais difícil para as PME.”
Fernando Alexandre também espera que as mudanças que estamos a viver sejam provisórias, uma vez que, na sua opinião, a “economia de mercado, mais ou menos regulada, provou ser o sistema económico que melhor satisfaz as necessidades materiais das populações” e que, passada a pandemia, “o pêndulo deslocar-se-á novamente no sentido da economia de mercado e do recuo do Estado”.
Susana Peralta discorda: “Espero que esta consciência de que grandes riscos como este só podem ser mitigados pelos Estados possa levar as pessoas a reinvestirem no Estado Social e na redistribuição a sério do rendimento e da riqueza, como aconteceu no pós-guerra”.
Este pode ser o grande debate da próxima década. As linhas na areia já começam a ser desenhadas.