A crise financeira de 2008 tornou real aquilo que muitos de nós imaginávamos ficção económica. Resgates bilionários, uma crise não vista desde a Grande Depressão, intervenções massivas dos bancos centrais. Se um banqueiro central dos anos 90 visse o que os seus sucessores têm feito à frente dessas instituições, talvez tivesse um ataque cardíaco. A era da pandemia deverá exigir ainda mais à política monetária. Será que o financiamento direto de défices pelos bancos centrais pode ser o próximo tabu a cair? Alguns já o estão a fazer. Perante uma crise sem precedentes, a distribuição “por helicóptero” de dinheiro às famílias e empresas acabará por ser uma opção? E quais são os riscos?
Em primeiro lugar, importa explicar do que estamos a falar. Os governos financiam os seus gastos (pensões de velhice, equipamento de hospital, salários de professores) com impostos e contribuições sociais e com dinheiro que pedem emprestado aos mercados financeiros. Num cenário de financiamento direto pelo banco central, ele usa o seu poder exclusivo para criar moeda a partir do nada para comprar dívida do Estado. Na prática, estará a pagar por programas de despesa pública (ou por um corte de impostos). Isso é conhecido como financiamento monetário.
Parece tentador, não é? Carregar num botão e poder criar todo o dinheiro que se quiser para pagar despesas. Então porque é que não o fazemos? É que esse tipo de atuação ficou para sempre associado a momentos históricos dramáticos. Não há debate sobre este tema em que não se refira a República de Weimar – são famosas as cenas de crianças alemãs a brincarem com notas ou de adultos a usarem-nas para acender o forno -, a crise do Zimbabué ou os problemas de gestão orçamental da América Latina. Precisamente por ser “fácil” é que o financiamento direto se pode tornar viciante para os governantes, que o vêem como uma saída para os seus constrangimentos orçamentais. O preço a pagar por essa utilização descontrolada é uma inflação galopante e a destruição do valor da moeda.
Nas últimas décadas, usar o banco central para financiar diretamente despesa do Estado tornou-se um pecado capital. Isso deveu-se, em parte, ao exemplo dado por um BCE muito conservador, criado à imagem do Bundesbank, o banco central alemão que carrega com ele o trauma da hiperinflação dos anos 20. Essa inspiração conservadora foi-nos lembrada há poucos dias, com a decisão do Tribunal Constitucional alemão, que deu voz àqueles que pensam há muito tempo que o BCE está a ir longe demais na sua atuação.
No entanto, há quem nos recorde que o financiamento monetária não foi sempre uma heresia. E aquilo que hoje é um tabu era, há relativamente pouco tempo, considerado um instrumento normal dentro da caixa de ferramentas dos bancos centrais. Assim nos explica o historiador Adam Tooze, entrevistado para a EXAME de junho.
“Acho que devemos ter cuidado quando falamos de tabus. A ideia de que o financiamento direto de défices por bancos centrais é uma ruptura histórica dramática é, ela própria, um efeito da viragem extraordinariamente conservadora na interpretação da independência dos bancos centrais, que ocorre nos anos 90 e 2000, baseada na interpretação alemã daquilo que o BCE deve ser.”
Tooze, professor na Universidade de Columbia e autor de “Crashed”, lembra à EXAME que a maior parte dos bancos centrais sempre admitiram essa possibilidade, incluindo o Bundesbank. O Banco de Inglaterra, por exemplo, usou-o com frequência e a economia britânica não se transformou no Zimbabué.
“Algures entre a República de Weimar/Zimbabué e uma destilação absoluta da essência do Bundesbank é o terreno onde a maioria dos bancos centrais operaram durante a sua História […] É um tabu relativamente recente. E será exposto como um tabu vazio, porque não há nada horrível por trás dele. Quando o faz, não é como cometer incesto. Não acontece nada.”
Aliás, não é como se os bancos centrais não estivessem já a meter no pé na água do financiamento monetário. Pode até argumentar-se que a água já lhes chega à cintura. Desde a crise financeira de 2008, não têm feito outra coisa que não comprar dívida pública (e outros ativos). Essas operações ficaram conhecidas como quantitative easing (QE). A diferença é que estão a fazê-lo de forma indireta. O BCE não absorve diretamente a dívida emitida por Portugal, mas compra-a depois aos investidores que a adquiriram. O Bank of America estima que a Reserva Federal dos EUA deverá comprar 90% das obrigações emitidas pelo Tesouro norte-americano este ano.
Portanto, a questão não está tanto no “pode-se fazer?” – esse comboio já partiu – , mas no “como se deve fazer?”. Num artigo publicado no VoxEU intitulado “Monetização: não entrem em pânico”, Olivier Blanchard e Jean Pisani-Ferry sublinhavam precisamente esse ponto. Essas operações permitem aos bancos centrais atuar no mercado, mesmo quando as taxas de juro já estão em terreno negativo. “Grandes compras de obrigações, de grande escala e sustentadas, tornaram-se parte da caixa de ferramentas dos bancos centrais, independentemente da postura orçamental”, escrevem os dois economistas.
“A preocupação não pode ser com o princípio de um banco central comprar obrigações soberanas”. A preocupação tem de ser sobre “estarem a comprar demasiado e pelas razões erradas – aquilo que se pode chamar excesso de monetização, motivada por objetivos de sustentabilidade das finanças públicas em vez de objetivos de estabilização macroeconómica e de preços”.
Pagar os défices
A Covid-19 poderá ser uma crise mais violenta do que a anterior e as finanças públicas dos Estados estão numa posição ainda mais frágil. Isso significa que os bancos centrais serão pressionados a ir mais longe na sua intervenção nos mercados. Em abril foi anunciado que o Banco de Inglaterra iria financiar diretamente o Estado britânico, com o governo a garantir que será temporário e de curto prazo (esse mecanismo já tinha sido usado em 2008). Os mercados praticamente ignoraram a novidade. Não houve pânico, nem indignação. Um mero encolher de ombros.
O Reino Unido não está sozinho. No final de abril, o Banco da Indonésia comprou diretamente obrigações ao Estado. Na Índia, o debate tem avançado muito rápido e o governador do Banco Central da Nova Zelândia já disse que tem “mente aberta” em relação a uma solução desse género. “Eu sei que a monetização direta é há muito tempo visto como uma heresia e um tabu”, afirmou o governador Adrian Orr, lembrando que, no passado, isso já foi usado. “Não é um tema misterioso. Simplesmente, não tem sido assim que gerimos as coisas.”
Claro que nenhum dos banqueiros diz que é uma solução permanente ou que essa dívida não será paga. Mas a experiência mostra que, quando se começa neste caminho, há o risco de ele passar a fazer parte da ementa de política monetária. Foi isso que aconteceu no Japão. “O mercado de obrigações japonês praticamente deixou de funcionar. As obrigações a dez anos podem ficar horas sem serem negociadas”, sublinha Tooze, à EXAME. “É muito diferente do mercado a que estamos habituados no Ocidente. Mas com o nível de intervenção que existe no Japão esse mercado desaparece, porque o Banco do Japão está a controlar a curva de taxas de juro e ela será aquilo que ele quiser que seja.”
O Japão começou a comprar dívida pública para tentar escapar à armadilha de deflação em que se deixou apanhar. Hoje, detém 4 em cada 10 euros que o Estado japonês deve ao mundo. “O Banco do Japão começou este caminho no final dos anos 90 e todos temos seguido o seu exemplo”, disse à Bloomberg Russell Jones, sócio da Llewellyn Consulting. “Tem sido uma mudança progressiva. Estamos a caminhar para financiamento monetário às claras.”
O compromisso é, claro, pagar essa dívida, mas analistas e investidores duvidam. Uma nota do Bank of America-Merrill Lynch notava que “o mercado não espera que o governo japonês seja capaz de pagar a sua dívida”. “O Banco do Japão pode perfeitamente deixá-lo explícito.”
É verdade que os problemas da economia japonesa não foram resolvidos, mas continua a não ser um mau país para se viver. Na recuperação da pandemia, esta possibilidade está a receber mais atenção e aquilo que era um mero burburinho começa a motivar cada vez mais debates.
Lucrezia Reichlin, ex-diretora do departamento de investigação do BCE, diz à EXAME que “a última crise mostrou que conseguimos ter um grande aumento da base monetária sem inflação”. Isso deverá dar mais coragem aos bancos centrais para serem mais agressivos na resposta. “Esta crise trará um aumento ainda maior do balanço dos bancos centrais”, acrescenta Reichlin. “Em princípio, isto não será permanente, embora possamos imaginar que o balanço ficará muito grande por muito tempo. Se chamarmos a isto monetização, então já aconteceu. É a consequência dos bancos centrais agirem como garantes de liquidez e criadores de mercados quando os mercados estão disfuncionais.”
Contudo, a professora da London Business School nota que, embora as suas ferramentas se estejam a expandir, os bancos centrais, na sua maioria, ainda “não se envolveram no financiamento direto de governos”. “Talvez acabemos por chegar lá, mas ainda não é aí que estamos.”
Dinheiro de helicóptero
No âmbito desta intervenção direta dos bancos centrais, há defenda uma solução ainda mais agressiva: colocar esse dinheiro diretamente nas mãos das famílias e das empresas. Há algumas semanas, o todo-poderoso BlackRock publicou um estudo, co-autorado por Stanley Fischer – ex-vice da Fed – que argumentava que “não existe margem de política monetária para lidar com a próxima crise” e que, embora os governos devessem fazer mais, isso parece ser pouco provável devido ao nível elevado de endividamento público. O que sobra? Uma coordenação explícita entre política orçamental e monetária.
A ideia seria criar um instrumento permanente que poderia ser usado sempre que os bancos centrais deixassem de ter margem para subir/descer juros, ao mesmo tempo que a inflação fica sistematicamente abaixo do objetivo.
“Uma forma extrema de “ir directo”, seria um financiamento monetária explícito de uma expansão orçamental, o chamado “helicopter money””, escreve a BlackRock que, porém, avisa que ele teria de ter limites definidos, para evitar “minar a credibilidade institucional” e levar a “gastos descontrolados”.
Este “helicopter money” recupera uma ideia tornada famosa por Milton Friedman em 1969, que pretendia apenas ilustrar os efeitos da política monetária, imaginando um cenário teórico em que, num evento irrepetível, são atiradas notas de um helicóptero. A parábola tem sido objeto de muito debate e alguns economistas argumentam que a sua aplicação seria mais eficaz do que os programas de QE que temos visto. Obviamente, não envolveria literalmente um helicóptero. O modelo normalmente discutido é um corte de impostos extraordinário.
Tanto os programas QE como o “helicopter money” envolvem a criação de dinheiro a partir do nada pelos bancos centrais. A diferença é que, no primeiro caso, eles compram ativos que ficam no seu balanço, no segundo o banco não recebe nada em troca.
“Outra possibilidade é o chamado “dinheiro de helicóptero”, um aumento permanente da base monetária para financiar diretamente famílias e empresas. Isto nunca foi tentado”, diz Reichlin. “Temos de avaliar as políticas alternativas, como a via fiscal, antes de delegar em responsáveis não eleitos um poder tão grande. Mas existem circunstâncias em que isso poderá ser considerado.”
Há cada vez mais gente a defendê-lo. Um grupo de economistas portugueses escreveu a 16 de março um manifesto – entretanto assinado por mais académicos – onde pedia que se levasse a sério a possibilidade de deixar cair dinheiro sobre a economia. Isoladamente, Jordi Galí foi um dos que o fez de forma mais estruturada nas últimas semanas, num artigo publicado também no VoxEU. Em resposta à EXAME, diz não acreditar que o BCE e a Fed assumam uma iniciativa de helicopter money. “Mas consigo ver como o BCE e outros bancos centrais possam aceitar comprar dívida perpétua, o que seria essencialmente equivalente”, diz o investigador do Centro de Investigação de Economia Internacional, da Universidade Pompeu Fabra.
E não existe a tentação de simplesmente continuar a fazê-lo? “A tentação pode existir. É por isso que dependemos da independência dos bancos centrais para julgar quando existem circunstâncias excepcionais”, acrescenta. A sua tese é que a atual conjuntura mais do que configura uma situação excepcional. “Se for implementado e se resultar, ficaremos melhor.”
Claro que, no caso do BCE, qualquer decisão desse género é mais improvável, porque violaria os tratados europeus. “O tratado estabelece que o objetivo primário do BCE é a estabilidade de preços e essa é uma linha que o BCE não cruzará. Porém, uma clarificação da definição de estabilidade de preços é necessária”, lembra Reichlin. O BCE está neste momento a fazer uma “revisão estratégica” da sua política monetária, que deverá definir melhor a meta de inflação de 2% e, eventualmente, trazer alguma flexibilidade.
Há mais motivos para deixar economistas nervosos com este tipo de soluções. O financiamento de défices apareceria num momento em que os balanços dos bancos centrais já incharam para níveis recorde. Além disso, a confiança nestas instituições é o seu bem mais precioso e ninguém quererá arriscar algo que a coloque em causa. Temos é de pensar no que significa a alternativa. Warren Buffett notava que, embora ninguém saiba qual será o impacto da expansão sem precedentes do balanço da Fed, “sabemos as consequências de não fazer nada”.
Inflação derrotada?
O receio de que isto represente a abertura de uma Caixa de Pandora deve-se à irresponsabilidade de alguns governos no passado. À medida que o século XX caminhou para o final, consolidou-se a ideia de que os bancos centrais tinham de ter autonomia dos governos, para que pudessem melhor resistir aos seus impulsos eleitoralistas.
Os economistas sabem que existe uma relação entre emprego e inflação. Quando a taxa de desemprego desce para níveis baixos, a determinado momento, isso faz com que os preços comecem a acelerar. No curto prazo, qualquer governo prefere ter menos desempregados, mesmo que à custa de alguma inflação, mas as crises dos anos 70 revelaram os custos dessa escolha. Descontrolada, uma subida dos preços cria uma crise económica que acaba por afetar todos.
Mas esta pode ser uma visão ultrapassada do mundo onde os bancos centrais operam e da sua função nele. É como achar que um telemóvel só serve para fazer chamadas ou que um computador apenas é útil se quiser fazer um cálculo complexo. E a primeira coisa que mudou foi precisamente a inflação. Eleita inimigo nº 1 nos anos 70, hoje bem que podemos meter uma faixa gigante a dizer “mission accomplished” e estaríamos mais certos do que George Bush esteve em 2003 sobre a Guerra do Iraque.
O mundo desenvolvido vive há vários anos num ambiente de inflação controlado. Aliás, o desafio parece ser hoje o oposto: os bancos centrais tentam desesperadamente dinamizar os preços e eles continuam a avançar a um ritmo mais baixo do que seria desejável (2% ao ano). Sim, a luta inglória dos bancos centrais tem sido fazer aumentar os preços e, com enorme ironia, eles têm falhado. Se a tarefa dos banqueiros centrais foi definida como tirar o copo de vinho das mãos de toda a gente antes de a festa se descontrolar, o que se faz quando a economia insiste em ficar sóbria por mais garrafas que beba?
Por isso mesmo, quando se consideram políticas mais agressivas para fazer face à Covid-19, uma subida de preços não é visto como um risco tão sério como antes. “O cenário central é de deflação, não de inflação, porque uma procura deprimida, um aumento de poupanças, incerteza e aversão ao risco irão prevalecer sobre os efeitos negativos de choques de oferta, mas precisamos de continuar vigilantes”, avisa Reichlin, à EXAME.
Dias depois de ter sido entrevistado pela EXAME, Adam Tooze escreveu um longo artigo sobre os mitos que têm governado os bancos centrais e a ilusão de que possam ser instituições meramente técnicas. Nele, argumenta que “os principais motores daquilo que se chama “lowflation” são os espetaculares ganhos de eficiência alcançados através da globalização, a enorme reserva de novos trabalhadores que chegaram à economia mundial através da integração da China e outras economias exportadoras e o enfraquecimento dramático dos sindicatos, para o qual as campanhas de anti-inflação, desindustrialização e desemprego elevado dos anos 1970 e 1980 contribuíram de forma poderosa”. Com menos poder, os trabalhadores têm menos força para pedir aumentos salariais, o que por sua vez, não puxa pelos preços.
Outros economistas apresentam justificações diferentes e não existe uma resposta definitiva. Independentemente das explicações, a relação entre emprego e inflação está colocada em causa. Antes da Covid-19, o desemprego estava em níveis baixos e os bancos centrais encharcaram os mercados de liquidez sem que isso tenha sido suficiente para puxar pelos preços. Homens cada vez mais fortes são trazidos perante a Excalibur sem a conseguirem arrancar da pedra.
Ao mesmo tempo, os governos têm resistido a estimular a economia através do orçamento, mesmo aqueles que teriam margem para o fazer. A pulsão pela austeridade ou pela contenção orçamental neste ambiente de preços deprimidos criou o cocktail mais aborrecido de sempre: o marasmo económico da última década. Lembra-se de o papel dos bancos centrais ser controlar os impulsos eleitoralistas dos governos? Agora, os bancos centrais imploram por esses estímulos. Draghi repetiu-o até à exaustão e Christine Lagarde tem continuado a insistir nessa mensagem. É pela falta deles que a recuperação tem sido tão lenta. Mesmo com juros em mínimos, os governos evitam endividar-se. Foi preciso uma pandemia para a Alemanha deixar de aplicar o travão à dívida.
Novamente Tooze:
“Em vez de sindicatos rebeldes e políticos imprudentes, o que os bancos centrais se passaram a preocupar foi com instabilidade financeira. Uma e outra vez, os mercados financeiros, que se assumiu serem disciplinadores, mostraram a sua irresponsabilidade (“exuberância irracional”), a sua tendência para entrar em pânico e a sua inclinação para a instabilidade.
Os bancos centrais têm servido como o cobertor de segurança sempre que os investidores ficam nervosos. Aconteceu no final dos 80, aconteceu com a bolha das dot-com e, claro, com a crise financeira de 2008 (e a crise da dívida que se seguiu na Europa). Agora, na resposta à Covid-19, essa resposta está a ser ainda mais massiva.
Perguntas desconfortáveis
Não admira que sejam colocados em cartoons vestidos de Super-Homem. Eles são a única instituição que está, de facto, a fazer política económica. Essa atuação tem sido vista como positiva para o sistema, ao acalmar os seus desvios, mas ela também cria distorções e elege vencedores e derrotados. Por um lado, ajudam Estados como Portugal a financiar-se e atiram os mercados financeiros para máximos históricos. Por outro, representam uma partilha de risco para Estados mais conservadores e criam dificuldades a investidores mais cautelosos, como é o caso de fundos de pensões alemães.
E é aqui que entra a decisão do Tribunal Constitucional alemão, que considerou ilegal o programa de compra de ativos do BCE. Apesar de todas as críticas que se possam apontar à decisão – e há muitas, de juristas e economias -, ela expõe uma fragilidade deste modelo: falta aos bancos centrais a legitimidade democrática para serem os “salvadores” da economia.
O BCE consegue justificar todas as suas ações como uma luta contra a deflação e pela estabilidade de preços, mas os seus poderes cresceram tanto que é difícil acreditar que esse é o seu único papel. Basta ver o estado de semi-pânico em que o Constitucional alemão lançou a zona euro, com dezenas de artigos a especularem sobre o poder destrutivo desta decisão, questionando mesmo o futuro da moeda única. Como pode um programa decidido por tecnocratas ter uma importância tão decisiva?
A Europa (e parte do mundo) vive numa paz podre, em que deixa ao banco central o trabalho sujo de manter o status quo a flutuar, sem refletir sobre o seu papel. Angela Merkel aceitou que o preço a pagar para resistir a mais integração orçamental é aceitar um BCE mais interventivo, que impeça o colapso financeiro de países mais frágeis e impeça a repetição da crise anterior. Em troca, a Alemanha recebe a sobrevivência da Zona Euro. Este papel promete ser ainda mais relevante na recuperação desta crise, quando as dívida públicas explodirem e o nervosismo regressar aos mercados.
Um dos aspectos mais curiosos na deliberação do Tribunal Constitucional alemão é que ele parece disposto a desafiar diretamente a independência do BCE, se isso significar que o banco central não implemente mais políticas que se afastam da sua visão de banco central. “É absurdo. Só mostra que independência só tem um significado: ser um banco central conservador”, diz Tooze à EXAME (a entrevista completa estará na revista de junho).
Depois de décadas em que a autonomia dos bancos centrais foi elevada a valor sacrossanto, ela começa agora a estar ameaçada em várias frentes. De Donald Trump a exigir no Twitter que a Fed desça juros a progressistas como Tooze a pedirem maior coordenação com os governos. Tanto na decisão do Constitucional alemão como no debate sobre financiamento direto dos défices, independência tem sido vista como nunca fazer certas coisas. Mas não é bem isso que ela é. “Independência não significa dizer não a um pedido de monetização direta. Significa que se pode dizer “sim” ou “não””, nota o antigo economista-chefe do Citigroup, Willem Buiter, para quem agora é altura de dizer “sim”.
Numa entrevista recente à Bloomberg, Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff também se referem a essa aparente confusão. “Os bancos centrais foram o braço de financiamento durante duas guerras mundiais, sem qualquer tipo de questão. Penso que iriam gozar consigo se falasse em independência de um banco central no contexto de qualquer uma das guerras mundiais. Não se pode realmente separar a história orçamental e a dívida da história monetária durante períodos extremos”, sublinhou Reinhart que, tal como Rogoff, concorda que os bancos centrais já estão, na prática, a fazer política orçamental.
O mais provável é que ideias que revolucionem o funcionamento dos bancos centrais sejam deixadas na gaveta. Afinal, este modelo trouxe-nos preços estáveis. Há formas piores de estar a “falhar”. Mas o mundo sobre o qual foi construída esta arquitetura monetária mudou. É justo perguntar se os bancos centrais não deviam mudar com ele.