O que são coronabonds? O que implicará pedir um empréstimo ao Mecanismo de Estabilidade Europeu? O que significa mutualizar a dívida? Pode ficar tudo na mesma? Quem segue o debate europeu sobre uma solução orçamental comum para a crise provocada pela Covid-19 poderá ter algumas destas dúvidas e nem sempre a discussão tem sido a mais esclarecedora. Este artigo tentará explicar cada uma das possíveis soluções que estão em cima da mesa.
A velha divisão Norte-Sul continua a travar qualquer avanço de integração europeia. O obstáculo é o de sempre: países como Itália pedem mais solidariedade, nações como a Holanda reclamam responsabilidade individual. Os primeiros defendem que a resposta comum da UE deve envolver maior integração, enquanto os segundos querem manter o status quo.
Existem dezenas de modelos e propostas feitas por políticos e economistas para tentar encontrar essa resposta. Para simplificar a explicação vamos reduzir os cenários a quatro, seguindo a divisão sugerida pelo Bruegel, um dos think tanks mais influentes de Bruxelas. Um dos autores do artigo no link, Grégory Claeys, foi entrevistado para a VISÃO desta semana e ajuda-nos a explicar o que pode estar em jogo.
“Estamos num beco sem saída. As posições estão entrincheiradas. Qual é o caminho? Não estou a ver”, reconhece Claeys.
Nos caminhos descritos a seguir não estão opções como o “helicopter money” (impressão de moeda pelo banco central para financiar défices). Embora seja uma medida defendida por cada vez mais economistas, ela não parece estar no horizonte dos responsáveis europeus.
1 – Deixar andar
Após semanas de negociações duras e elevação de expectativas, isto pareceria uma enorme derrota para o projeto europeu. Mas não devemos subestimar a capacidade dos Estados-membros para adiarem decisões. No curto prazo, a opção pode ser deixar as coisas como estão.
O que significa que cada país seria responsável por gastar aquilo que entender – deverá ser bastante – e endividar-se em conformidade. Previsivelmente, isso provocará uma pressão dos investidores sobre os juros, principalmente entre os países financeiramente mais frágeis, como Itália ou Portugal. Parece uma repetição da crise anterior, mas essa pode ser uma interpretação simplista.
Na realidade, há várias diferenças e uma delas é muito importante. Ao contrário daquilo que aconteceu há nove anos, o Banco Central Europeu colocou-se no terreno muito rapidamente, anunciando um programa de emergência de compra de ativos e o relaxamento de algumas das regras que limitavam a sua atuação. Isso servirá como uma rede de segurança para os países, protegendo-os de agravamentos perigosos dos seus juros. Será como ir deitando água fria sempre que os mercados aqueçam demasiado. Provavelmente não é uma solução de longo prazo, mas aliviará agravamentos mais imediatos.
Claeys também teme a repetição da crise anterior, mas concorda que há diferenças. “Há uma repetição da confrontação, mas o Sul está em melhor situação. Aprenderam com os efeitos da austeridade e recusam-na. Hoje, são governadas por coligações de esquerda e França também está a fazer um jogo diferente. Além disso, têm o apoio da Comissão Europeia e do BCE, que também aprendeu com os erros”, diz à VISÃO.
Susana Peralta, economista da Nova SBE, considera que, desta vez, estamos a assistir a uma “reação mais rápida” das instituições, devido “ao facto de haver uma percepção de risco partilhado que não havia na altura e também de o epicentro da crise ser a Itália, uma das maiores economias do euro e com um historial político recente que faz recear um desmoronar da própria UE”.
Embora positiva, ironicamente, a rede lançada pelo BCE é um dos motivos para não haver muita urgência para chegar a um acordo. Os países do Norte da Europa argumentam que ela é suficiente para manter todos à tona e rejeitam medidas ambiciosas. O próprio Sul pode entender que pode esticar mais a corda nas negociações, uma vez que, mesmo que elas falhem, o BCE estará sempre lá para o segurar.
Isso pode ser verdade no imediato, mas não é certo que o BCE consiga travar toda a pressão, caso os investidores comecem a testar os limites do banco central. Além disso, ser mais ou menos solidário ou partilhar mais ou menos o risco é uma opção política. Em determinado momento, seria útil os governos nacionais – que têm legitimidade democrática – assumirem o que a querem (ou não). Nesta altura, algumas vozes mais conservadoras já argumentam que este programa do BCE está a ir longe demais, um movimento que só se vai intensificar à medida que lhe seja exigido ir a jogo. Mais: as compras de dívida do BCE não impedem que o endividamento dos países dispare.
Por último, um desfecho sem acordo enviaria uma mensagem terrível: tal como na crise anterior, a União Europeia não se consegue coordenar. Em Itália, onde a confiança na União Europeia já era baixa, as sondagens sugerem que nove em cada 10 italianos acham que a UE não está a fazer o suficiente por eles e 2/3 veem a UE como uma desvantagem. O potencial para crescimento do euroceticismo é enorme. Claro que, por seu lado, países do Norte respondem que, se aceitarem demasiada integração, o crescimento do populismo será no seu próprio país.
2 – Linhas de crédito
A haver uma solução, esta parece ser a mais fácil de obter acordo, ao exigir menos mudanças institucionais e ao representar um sapo mais pequeno para a Holanda engolir. Neste cenário, o Mecanismo de Estabilidade Europeu (MEE), fundo de resgate da UE criado para acudir a países em dificuldades, abriria as suas linhas de crédito, o que permitiria aos Estados-membros aceder a financiamento mais favorável.
Em princípio, o acesso ao MEE também abriria a porta à utilização do programa de Transações Monetárias Definitivas (OMT na sigla original), por parte do BCE. Já ouviu falar dele. Normalmente, os jornais chamam-lhe bazuca. Foi criado em 2012 e, embora nunca utilizado, é visto como um ponto de viragem na crise do euro. Permite a compra ilimitada de dívida de países pressionados.
Regressando às linhas de crédito do MEE, elas permitiriam financiamento mais barato (o fundo tem emitido a perto de 0%) e provavelmente com maturidade mais longa. Tudo somado, seria uma ajuda importante à sustentabilidade da dívida. A ideia esteve em debate no último Eurogrupo, com um modelo que previa um limite de financiamento de 2% do PIB de cada país e a exigência de dois níveis de condicionalidade: de curto prazo (dívida só pode ser usada para o combate à Covid-19) e de longo prazo (voltar a cumprir as regras orçamentais).
Logo aqui – e até na proposta mais modesta -, já nos deparamos com vários problemas: 2% do PIB é um valor muito curto, numa altura em que muitos défices deverão disparar para os dois dígitos; como os juros já estão muito baixos, financiamento “ainda mais barato” não ajudaria por aí além muitos países (para Portugal é um “talvez”); e, mais do que tudo, o tema da condicionalidade tornou o debate tóxico.
Os italianos e outros países do Sul recusam a ideia de que seja necessário respeitar condições para aceder a esse financiamento e nem sequer gostariam de ter de recorrer ao MEE, devido ao estigma de incumpridor que lhe está associado. Contudo, a condicionalidade faz parte do ADN do fundo de resgate e os holandeses, por exemplo, não querem abdicar dela.
Mais uma vez, esta solução também não faria nada para limitar o aumento do endividamento dos Estados. A dívida de Itália e outros continuaria provavelmente a disparar.
3 – Partilha de risco ou coronabonds “light”
Quando se fala em coronabond, nem sempre é claro aquilo que se está a dizer. Comecemos pelo básico: os países endividam-se para pagar as suas despesas e fazem-no através da emissão de títulos de dívida, a que se chamam obrigações. Essas obrigações têm um juro associado, que varia consoante os investidores considerem que aquele investimento é mais ou menos arriscado. Portugal paga normalmente juros mais altos do que a Alemanha. Se algum acontecimento fizer aumentar essa desconfiança – por exemplo, uma crise histórica que congele a atividade económica – os juros podem aumentar. Nalguns casos, como aconteceu em 2010/2011 com Portugal e outros países, eles atingem níveis tão elevados que se tornam insustentáveis e o país deixa de poder financiar-se no mercado.
E as coronabonds? Elas recuperam a proposta de eurobonds, muito discutida durante a crise do euro, mas nunca concretizada devido às mesmas divisões a que estamos a assistir hoje. São emissões de dívida comuns a todos os países. Bond significa “obrigação”. Neste caso, chamam-se coronabonds, porque a ideia é serem utilizadas no combate à Covid-19.
Uma versão light deste instrumento é avançada pelo Bruegel, que sugere a criação de uma agência de gestão de dívida da Zona Euro, que emitiria montantes substanciais de dívida, que seria depois distribuída conforme a dimensão da economia e da população de cada país. Ou seja, apenas o risco e o custo de financiamento seria partilhado por todos. Os países estariam a ajudar-se uns aos outros a pagar menos juros, mas a dívida continua a ser uma responsabilidade de cada um.
Esta solução não impede que Estados-membros com níveis de endividamento público já bastante elevado não se vejam, no futuro, numa situação em que a sustentabilidade da sua dívida é questionada (Itália, Portugal…).
Para ser mais rápido, tudo isto poderia ser feito através do MEE, que já tem uma estrutura montada, o que aceleraria o processo. No entanto, provavelmente exigiria várias alterações de arquitetura, aumentando o poder de fogo do fundo, prescindindo de condicionalidade e dirigindo o dinheiro a *todos* os países, evitando um estigma para aqueles que sejam obrigados a fazê-lo.
Esta proposta tem a vantagem de, potencialmente, ajudar os Estados a financiarem a juros ainda mais baixos, mesmo em comparação com as linhas de crédito do MEE. Será tanto mais assim se o BCE atuar como comprador destes títulos. O que nos leva a uma segunda vantagem: comprar dívida emitida por uma entidade comum aos Estados-membros facilita muito a vida do BCE, porque o deixa com mais margem para ficar exposto a esses ativos.
É também politicamente menos sensível do que comprar dívida de países individuais. Em última análise, nota o Bruegel, este modelo também permitirá ao BCE manter estes títulos no balanço sem que eles alguma vez sejam pagos. “Esta pode ser a forma mais simples de monetizar parte da dívida da Zona Euro, através de uma instituição europeia, com legitimidade democrática suficiente para garantir que existe um acordo político suficientemente forte entre os países europeus em torno deste plano”, escrevem Claeys e Guntram Wolff.
A desvantagem deste cenário é fácil de identificar: também neste caso, a dívida dos países continuaria a aumentar. Em certos casos, alguns Estados podem acabar com um endividamento público superior a 150% do PIB.
Nos últimos, tem havido um debate intenso acerca dos limites do endividamento, com alguns economistas a argumentarem que, no ambiente de taxas de juro baixas em que estamos a viver, rácios de dívida de 60% do PIB podem ser desnecessariamente exigentes. Mas a generalidade dos políticos e investidores ainda se assusta com valores de dívida de dois dígitos, pelo que podem ter a tentação de reduzir esse rácio com austeridade, o que, aplicado na generalidade dos países da zona euro, pode atirá-la para uma recessão ainda mais profunda.
4 – Verdadeira mutualização
Uma outra versão, bastante mais ambiciosa, levaria a mutualização até à própria dívida. Há várias formas de a desenhar, mas o Bruegel sugere a criação de um fundo que emitirá coronabonds extraordinárias, que financiariam despesas relacionadas com o vírus, sejam gastos de saúde ou mega-programas de apoio ao emprego.
Nesta opção, a dívida não fica com um só país (é partilhada por todos), sendo o financiamento canalizado para as regiões onde o choque for mais forte. Se assumirmos que os países maiores contribuiriam mais, estaríamos a falar, na prática, de transferências orçamentais, algo que o Norte da Europa sempre rejeitou.
O Bruegel sugere que funcione como um seguro contra choques externos. “Um seguro deste género faz economicamente sentido, se “as considerações de risco moral não são justificadas neste caso, como disse Mário Centeno, após o Eurogrupo. Politicamente, mostraria que a UE é capaz de união e solidariedade nestes tempos terríveis”, escreveram os investigadores.
Entre todas as opções, seria aquela que mais se assemelharia a um “momento Europa”. Alguns Estados ainda estão a pressionar para que seja esta a solução, mas se as anteriores já enfrentam obstáculos, esta seria ainda mais complexa de montar e teria mais detratores.
Como seria definido o que é “uma despesa relacionada com o coronavírus”? Um subsídio extra para profissionais de saúde pode ser uma medida a considerar por muitos, mas deveria caber aqui? Talvez haja Estados a discordar. Se estivermos a falar de relançar a economia após o choque, as opções são ainda em maior número.
Isto pode ser feito através da criação de um novo fundo ou, por uma questão de rapidez, através do MEE. Porém, para que isso fosse possível, seria necessário uma revolução nesse mecanismo, que pode ser complicado de acordar.
Caso seja impossível convencer o Norte da Europa da necessidade desta última opção, colunistas como Wolfgang Münchau defendem desde a crise anterior que será necessário uma confrontação mais direta. A Alemanha só aceitará mudanças substantivas quando sentir que o euro pode mesmo morrer. Quando houver Estados dispostos a abandonar o barco. Münchau entende que os países que defendem coronabonds devem emitir-las em conjunto, mesmo sem os opositores. Susana Peralta concorda. “Julgo que neste momento é preciso enviar um recado claro à Alemanha e Holanda de que isto quebra se não houver partilha de risco. Infelizmente, é capaz de ser a única forma de eles reagirem. Porque devem saber que têm muito a perder se acabarmos com a moeda única ou com a própria UE”, sublinha.
Neste momento, há ainda um nevoeiro cerrado em redor de todas estas opções. Um agravamento da crise trará uma urgência renovada e um alívio pode fazer o oposto. Mas já se percebeu que não há soluções mágicas. Qualquer que venha a ser a solução, ela não resolverá sozinha esta crise e, provavelmente, criará outros problemas. Neste contexto, não há caminhos indolores.