Trancados em casa, sem contacto físico com amigos e família, a ver o coronavírus expandir-se e as vidas profissionais suspensas, todos desejam que a crise pandémica termine o mais rápido possível. No entanto, as mudanças forçadas a que a Covid-19 nos obrigou podem ser úteis para nos ajudar a repensar métodos de trabalho e como organizamos a nossa vida, avisa Maria João Valente Rosa, demógrafa e professora na Universidade Nova de Lisboa.
“Todo o nosso modelo de funcionamento do trabalho vem da 1ª Revolução Industrial. Estamos agora na 4ª… Não podemos continuar a esticar o que se fazia no passado. Se continuarmos a achar que, quando tudo isto passar, voltamos ao passado, vamos perder uma oportunidade para planear o presente e o futuro”, afirmou Maria João Valente Rosa, durante o segundo painel da iniciativa “O Futuro do Trabalho”, que continuará a decorrer durante o resto da semana.
A investigadora nota que a pandemia trouxe mudanças profundas na nossa relação com o trabalho e os nossos espaços pessoais. A começar pela privacidade. Se antes as nossas casas eram locais de refúgio, agora ficam expostas aos outros através de janelas de videoconferência. No domínio do trabalho, isso significa menos contacto com os outros e maior autonomia. “Perderam-se muitas interações profissionais. Agora já não vejo os meus colegas a três dimensões”, refere Valente Rosa. “A nossa responsabilidade individual também aumenta. Já não somos avaliados pelo número de horas em que estamos no trabalho, mas pelo resultado. Deixámos de picar o ponto.”
Claro que nem todas as pessoas têm a mesma experiência e, desde o início da pandemia, ficou claro que ela iria acentuar assimetrias sociais e económicas – os mais pobres são mais vulneráveis -, dividindo o país e o mundo entre quem pode estar ou não em teletrabalho e, depois, entre quem o consegue fazer com melhores ou piores condições.
“Mesmo nos casos de teletrabalho, nem todos estão em situações idênticas. Há pessoas com locais de maior conforto, mais espaço, melhores condições de trabalho. Outras nem tanto. Têm casas de tamanho reduzido, sem espaço para se isolarem”, sublinha a antiga diretora da Pordata.
Este impacto diferenciado é ainda mais relevante num país como Portugal, onde os níveis de desigualdade são bastante elevados. Aquilo que sabemos da pandemia sugere que esse fosso irá crescer ainda mais. “A mobilidade social em Portugal já era bastante baixa. Segundo um estudo da OCDE, são necessárias cinco gerações para alguém passar de um escalão de baixo rendimento para médio rendimento”, explica a demógrafa. “Temos uma cola social forte. Estamos colados ao sítio onde nascemos. Esses pisos de baixo tornam-se agora ainda mais pegajosos.”
Carreira para a vida?
Algumas destas mudanças drásticas trazidas pela pandemia chegam numa altura em que o mundo do trabalho já estava em alteração. A velocidade da inovação tecnológica ameaçava deixar muitas pessoas presas na transição. A Covid-19 poderá tornar essa tendência ainda mais clara.
“Não vamos ter uma carreira única. Cada vez mais percebemos que um emprego para a vida é mais difícil de ter como garantido. Provavelmente, vamos ter múltiplas carreiras”, antecipa Valente Rosa. Continuaremos a formar-nos nas áreas que nos dizem mais, mas talvez não possamos ficar para sempre aí integrados. “Cada um de nós tem múltiplos interesses e habilidades. Muitas vezes, iniciamos uma atividade porque ela nos é cara, mas vamos progredindo na idade, enriquecemos numas áreas, empobrecemos noutras. Quando andei na escola, ninguém falou da Internet. Hoje, vivo num mundo totalmente diferente.”
Impacto político
Também não é de excluir que a Covid-19 provoque transformações estruturais na forma como nos relacionamos uns com os outros. Quando o outro nos pode contagiar com um vírus potencialmente mortal, é natural que a nossa desconfiança aumente e que a distância física se torne num afastamento social.
“Temo muito que este efeito resulte num fechamento em relação aos outros e que passemos a ver o mundo em espelho, em vez de por uma janela. Ficámos mais centrados em nós próprios e com muito medo do outro. Fala-se tanto em distanciamento social, mas o que está em causa é distanciamento físico”, assinala Valente Rosa. “Isto pode levar a que passemos a viver em pequenas tribos. Para as crianças, isto é terrível. Precisam de conviver com a adversidade e saber viver com a diversidade.”
Este impacto poderá ter também consequências políticas, com esta desconfiança dos outros a refletir-se em visões mais fechadas. “Alguns sentimentos mais nacionalistas, mais xenófobos, têm todo o terreno fértil para se fortalecerem neste momento”, avisa a demógrafa.
Este foi o painel com que concluiu o primeiro dia de debates e reflexões sobre o “O Futuro do Trabalho”. Um evento que se estenderá durante todos os dias desta semana, com painéis a partir das 11h e 12h. Os horários podem ser consultados na imagem em baixo.
