Este é o ponto de não retorno, aquele instante único na História em que já é impossível adiar mais a tomada de medidas sérias e drásticas em matéria de sustentabilidade ambiental. Mas engana-se quem pensa que esta é uma responsabilidade a ser assumida apenas por políticos ou por agências nacionais e internacionais diretamente relacionadas com o tema.
Convencida de que também os artistas visuais (e as pessoas que pensam as Artes) têm um papel a desempenhar, a IACCCA – Associação Internacional de Coleções Corporativas de Arte Contemporânea (organização sem fins lucrativos que reúne curadores de mais de 50 coleções em todo o mundo, num total de mais de 150 000 obras) avançou para o livro In the Time of Ecological Disruption, coordenado pela curadora belga Heidi Ballet, que selecionou trabalhos oriundos destas 50 coleções que melhor testemunhassem a preocupação com o estado de urgência ambiental. A coleção do novobanco – com mais de 1000 obras e destacada com o prémio internacional nos “Corporate Art Awards – Mecenati of the XXI Century” do Parlamento Europeu –. é a segunda mais representada no volume, com oito obras selecionadas por Heidi Ballet.
É assim que, na mesma obra, temos reunidas peças de artistas tão diversos, em termos de linguagem e origem, como as dos portugueses José Maria Gusmão e Pedro Paiva, Noé Sendas ou os estrangeiros Cindy Sherman, Santiago Sierra, Pierre Huyghe, Allighiero Boetti, Juan Muñoz, entre dezenas de outros, acompanhadas pela reflexão de autores como T. J. Demos, Selina Nwulu e da própria Heidi Ballet que chega a este trabalho com um longo percurso internacional feito em acontecimentos como a Trienal de Escultura de Beaufort, na Bélgica, ou em instituições como a Sala Jeu de Paume, em Paris. A Visão falou com ela a propósito destes desafios para um futuro que, afinal, é presente.
Como é dito neste livro de forma muito clara, estamos num momento de não retorno em matéria de urgência ambiental e climática. Que contributo pode ser o das Artes e dos artistas?
A arte não vai mudar o mundo, seria naif pensar que sim. Mas, como acontece com toda a reflexão cultural, pode desempenhar um papel, que é o de pensar o mundo e a condição humana nesse mundo. As mudanças de comportamento são inevitáveis, já não no futuro, mas agora mesmo, no presente imediato, de tal maneira as circunstâncias são diferentes das que conhecemos quando éramos crianças ou mais jovens. A quem trabalha em artes ou em indústrias culturais cabe tentar alterar o padrão de pensamento da sociedade. Dou-lhe um exemplo: Há muita gente que fala em sustentabilidade, mas quando viaja, opta pelo avião em vez do comboio, que, em muitos casos, nem sequer é muito mais caro ou complicado. Temos de ser mais imaginativos para ir além do óbvio e do mais fácil e, como artistas ou profissionais relacionados com as artes, temos de ser mais persuasivos e eficazes no modo como comunicamos.
Como curadora, o que sente que pode fazer?
É um papel limitado, disso não tenho dúvidas. Tudo o que posso ver é dar a ver, ampliar uma imagem para que ela se torne realmente poderosa. A um nível mais prático, mas não menos importante, também podemos conseguir que os materiais usados numa exposição sejam o mais sustentáveis possíveis. Mas temos de encarar com realismo o facto da mudança não ser fácil. A economia ainda está baseada no desperdício e no consumo sem grande reflexão.
Falando ainda do livro, há aqui uma coleção portuguesa em destaque: a coleção de fotografia do Novobanco. Porquê?
Porque é uma coleção impressionante e muito representativa do que de melhor se faz nesta arte em vários países. Neste livro é mesmo a segunda coleção mais representada, logo a seguir à da INELCOM, de Espanha.
Para este projeto contactou artistas de todo o mundo. Sente que esta preocupação é partilhada por todos eles, independentemente da sua cultura, geração, linguagem…?
Falo, de facto, com muitos artistas, não apenas para este projeto, mas para o meu trabalho em geral, mas o que eu sinto é que o sentido de responsabilidade está a crescer. Há uma evolução, isso é inegável, mas também tenho de admitir que, após a pandemia, há por todo o lado uma sede de viajar que é uma autêntica loucura. O que não ajuda nos nossos objetivos porque as pessoas continuam a privilegiar o transporte aéreo e não querem muito ouvir falar de questões sérias ou de assumir responsabilidades. A Covid também nesse aspecto foi um problema porque veio atrasar os nossos objetivos.
E a guerra?
Sim, também. O que uma vez mais dispersa as atenções das pessoas de problemas como a crise climática. A guerra e os seus efeitos são tão devastadores que é impossível dizer a alguém: Olha que também tens de encarar o problema da responsabilidade ambiental. Por outro lado, há outras consequências nefastas. Com esta guerra, que ameaça voltar a dividir o mundo em dois blocos como aconteceu durante a Guerra Fria, torna-se muito mais difícil colocar os vários países a estabelecer acordos em matéria ambiental, sabendo nós que as Nações Unidas há muito que deixaram de desempenhar um papel relevante nesta área. A guerra é uma enorme tragédia. Para além das pessoas que estão a morrer na Ucrânia, estamos a condenar por décadas qualquer hipótese de política global.
Esta preocupação é comum a todas as civilizações?
Na Universidade formei-me em Estudos Orientais e sinto que em países como a China há muito ressentimento em relação ao que é considerada a arrogância ocidental. E tenho de admitir que, na verdade, os nossos países não falam de igual para igual com os outros blocos políticos.
O que, como também é dito aqui no livro, começou ainda no final do século XV, com a chegada de Cristóvão Colombo ao continente americano, o que, desde logo, teve um impacto ambiental grave…
E a verdade é que ainda não se formou uma mentalidade pós-colonial. É como se o Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, sentisse que tem de intervir em tudo, como aconteceu agora com a visita de Nancy Pelosi a Taiwan, que, para mim, é simplesmente ridículo. Cada vez mais estou convencida daquilo que diz o filósofo francês Jean-Pierre Dupuy: “Destruímos a Natureza, não porque não gostemos dela, mas porque nos odiamos uns aos outros.” Deparei-me com esta verdade quando entrevistei Amitav Ghosh, o autor do livro The Great Derangement, e fez-se luz na minha cabeça. O Capitalismo está ligado ao colonialismo, alimentam-se mutuamente, é por isso que o Ocidente ainda não assumiu uma atitude de ruptura com o seu passado. Mas não quero ser totalmente pessimista, vejo que em muitas partes do mundo (como na América do Sul, por exemplo) há muitos artistas e filósofos realmente empenhados em fazer as coisas de maneira diferente.
Então a nossa má relação com a Natureza está relacionada com a nossa má relação com o Outro?
Sem dúvida. Ao longo da realização deste livro, pensei muito na questão: “A quem nos referimos quando dizemos nós?” Ou ainda: Por quem nos sentimos responsáveis? Há um pequeno grupo de empresas que é responsável por uma grande parte da poluição nos países do Hemisfério Sul mas nunca assumem os males que daí decorrem. Aquelas pessoas nas áreas afectadas, que são milhões, não fazem parte da comunidade de quem toma decisões nessas empresas.
A Humanidade ainda se considera dona e senhora da Natureza, de que pode dispor como lhe apetece?
Penso que foi assim durante séculos, mas agora é-o cada vez menos. Há uns anos, quando estive a fazer um trabalho de curadoria no Norte da Noruega, ainda senti que havia a ilusão de que a Tecnologia de ponta poderia resolver todos os problemas da Humanidade. Mas é cada vez mais raro encontrar este tipo de convicções ,até porque a realidade está aí, a chocar-nos todos os dias. No meu país, a Bélgica e na Alemanha, onde vivo, está a acontecer a maior seca de que há registo. Como é que, face a isto, ainda é possível negar as alterações climáticas e pensar que somos donos e senhores da Natureza?
Emergem com uma força crescente movimentos de cidadãos, como o eco-feminismo, que foi pioneiro nos anos 1970, e agora está a ressurgir. Pensa que as mulheres olham para estas questões de forma diferenciada?
O eco-feminismo, de que também se fala neste livro, é, de facto, um movimento muito belo e está a ressurgir, como, aliás, o próprio feminismo. Embora não acredite que as mulheres sejam mais preocupadas do que os homens nestas matérias, temos de admitir que a Cultura atribui historicamente papéis diversos a ambos os sexos e isso tem evidentemente o seu peso. Penso que, por um legado recebido das suas antepassadas, as mulheres ainda são muito cuidadoras e alimentadoras, o que talvez as torne mais atentas a tudo o que se passa na Natureza. Enquanto os homens têm a cultura de proteger, as mulheres têm a de cuidar, o que não é a mesma coisa. É muito curioso vermos como, durante a crise pandémica, os homens falavam frequentemente da guerra contra o vírus. Qual guerra? O uso desta palavra não é ocasional, fala-nos de toda uma cultura masculina voltada para o combate. E é também sobre as diferentes representações culturais que, de um modo ou outro, herdamos, que também temos de trabalhar. Elas condicionam muito o modo como nos relacionamos uns com os outros e com a Natureza.