Mesmo depois de se passar por uma cancela e de se ser recebido por um guarda que pede a identificação, a sensação de que se está a chegar a um turismo de habitação é incontornável.
O Estabelecimento Prisional de Leiria para jovens estende-se pelos 90 hectares da Quinta do Lagar d’El Rei, onde há vinha, lagar para o azeite e uma área agrícola que abastece o Banco Alimentar da região.
Até há pouco tempo, nem havia cercas ou arame farpado a delimitar o perímetro da prisão os postos de vigia faziam o trabalho de controlo de fugas. Durante o horário das atividades, é ver os jovens reclusos à solta pela quinta. A liberdade está mesmo ali, ao alcance da vista e do coração. Nos edifícios degradados pelo passar dos anos e pela falta de verbas, decorrem oficinas, cursos profissionais, aulas da escola e consultas médicas.
Estão dez matulões numa sala. Largam os dossiês e as canetas nas mesas, dispostas em U, e ficam todos de pé, mãos nos bolsos, pose dura. A professora, franzina, parece sumir-se no meio deles. Em vez disso, provoca-os: “Ser sensível, para vocês, é ser fraco?” As respostas, atropeladas, surgem sem vergonhas: “Sozinho sou mais sensível”; “Temos de ser sensíveis para ajudar e saber o que se passa”. Dulce Pires, 31 anos, formadora da associação Humanidades, está ali, pela primeira vez, para dar início ao projeto Poder Caminhar, da União Europeia, que ajuda reclusos a tomarem decisões com responsabilidade e a fazerem um plano de vida para depois das grades. Os jogos que a psicóloga vai lançando estimulam-lhes a comunicação e o relacionamento interpessoal.
Começar aos 13
Quando ali entram para cumprir pena, traçam-lhes um plano individual de readaptação, avaliado anualmente pelos técnicos de reeducação, com sugestões para se ocuparem durante a pena. Mas ninguém é obrigado a fazer seja o que for. Francisco Pereira, 23 anos, de Fafe, foi encaminhado para o curso Poder Caminhar, porque já acabou o 12.º da área de Humanidades, do ensino recorrente, na escola da prisão (chegara com o 7.º ano).
Tinha 17 anos quando foi detido, ele e a sua quadrilha, depois de um historial de furtos e roubos com armas, iniciado aos 13. Sentença: oito anos e meio atrás das grades.
“Era muito pobre. Via os outros a ter e eu não… fui pela ilusão e atrás de más companhias”, desculpa-se. Antes de chegar a Leiria, passou pelo Centro de Reinserção do Porto e pelas prisões de Guimarães e Braga. Preferia estar no Norte, embora misturado com adultos, porque teria visitas da família. Quando completar os dois terços da pena, pedirá transferência. Já perdeu a esperança de sair de vez porque acusou recentemente haxixe no sangue. A droga, ali, é fácil de obter.
Francisco partilha com outro rapaz a cela onde fica fechado das sete da tarde às oito da manhã. Valem-lhes a PlayStation, a televisão, o vídeo e o rádio. Ao fim de semana, joga futebol no campo vedado por arame farpado que corta as bolas com facilidade. Se quisesse ler, Francisco poderia ir buscar um livro à biblioteca. Mas está impedido de aceder à internet e de usar telemóvel (só ligam de uma cabina para números específicos). Fumar, desde que ao ar livre, é permitido até dentro dos portões da pequena escola.
A maioria andava a roubar
Este estabelecimento prisional (EP) foi criado em 1947 para albergar jovens delinquentes, entre os 16 e os 21 anos, que podem ali permanecer até aos 25. Os presos dormem e comem em oito pavilhões, cada um com capacidade para cerca de 40 pessoas. Também existe uma unidade livre de drogas, onde pernoita quem quer largar o vício.
“Temos preventivos e condenados de todo o País, mas em especial da zona de Lisboa, a morar em bairros sociais conotados com a marginalidade e comportamento desviante”, diz Maria Helena Cardoso, adjunta do diretor. Neste momento, o EP alberga perto de 250 reclusos, com uma média de 21 anos (um terço são estrangeiros, de Cabo Verde, Guiné, Angola, Roménia e Brasil).
Francisco Pereira não está inserido na maioria, já que 45% da população cumpre penas até cinco anos. Apenas 4% ali ficam mais de uma década. E os crimes mais comuns são o furto e o roubo. O número de presos até aos 18 anos tem-se mantido estável, em todo o País. De 2012 para 2013, subiu apenas de 60 para 63, sendo que, destes, no ano passado, apenas 13 foram condenados (cinco por crimes contra as pessoas, oito por crimes contra o património).
‘Estar preso ajuda-nos a pensar’
Quem não quer usar farda, tem de cuidar da sua roupa. Coisa que poucos se arriscam a fazer, sobretudo no inverno. A distinção da identidade faz-se, assim, através das formas mais ou menos criativas de usar as vestimentas da prisão, e das tatuagens, penteados e brincos. Estão presos, mas não deixam de ser jovens com a testosterona ao rubro.
Sabe-se que há ali brigas e desacatos. Mas quem os vê, ao final de um dia de trabalho, prestes a entrarem na formatura, sente a camaradagem que os une. Quando se separam, despedem-se com cumprimentos entusiastas, como se, passadas umas horas, não estivessem ali outra vez, e outra vez. Para, por exemplo, integrarem os cursos do Centro Protocolar de Formação Profissional para o Setor Justiça (serralheiro, operador agrícola ou pedreiro). Ficam com equivalência ao 9.º ano e recebem 60 euros por mês. Walter Barreto, 23 anos, está quase a terminar o curso de pedreiro, mas já tem outro de jardineiro na bagagem, para levar dali para fora, em abril.
“Quando a minha mãe morreu, desorientei-me um bocadinho. No 8.º ano, comecei a cometer crimes e deixei a escola.” Hoje, com seis anos de penas às costas, arrepende-se.
“Estar preso ajuda-nos a crescer e a pensar. Agora tenho outra mentalidade, outros objetivos. Quero trabalhar para ajudar a minha família”, diz, já a sonhar com a sua casa na Brandoa, nos arredores da capital.
Para estas reflexões e arrependimentos, hão de ter contribuído as aulas de GPS (Gerar Percursos Sociais), dadas pelos técnicos Carla Pragosa, 39 anos, e Joel Henriques, 38 anos. Em cima da mesa da sala de aula estão vários copos de plástico, com papelinhos de cores diferentes lá dentro. Cada cor corresponde a uma característica: medo, agressividade, tolerância, teimosia, ponderação, egoísmo, arrogância… Para melhorar o autoconhecimento, os reclusos escolhem as cores com que mais se identificam e, depois, trocam-nas pelos substantivos que preferiam correspondessem à sua personalidade.
Uma vez mais, debate-se o assunto: “Assumir que sou arrogante doeu. Às vezes nem me apercebo de que sou assim…”, lamenta-se um dos dez jovens, enquanto brinca com um clip, entre a língua e os dentes.
Lá fora, à porta da aula de Filosofia do 11.º ano, um aluno analisa o teste que acaba de receber. Está com cara de poucos amigos: “Tive 11,7. Não estava à espera disto, costumo ter 17.” Ali, a escola é a vida deles. Os jovens dão o seu melhor, nem que seja para que os dias deixem de ser assim tão iguais uns aos outros. “Vá pessoal, vamos lá formar”, atira um dos guardas, a seguir ao toque da sirene, às dez para as cinco. É hora de recolher aos pavilhões, até ao dia seguinte.